"Um primeiro exemplo e totalmente provisório. Em todos os tempos se quis «reformar» os homens: a isto, acima de tudo, se chamou moral. Mas, sob a mesma palavra, está oculta a tendência mais oposta. Tanto a domação da besta-homem como a educação de um determinado género-homem recebeu o nome de «melhora»; mas estes termini zoológicos exprimem realidades — realidades, é certo, acerca das quais o «melhorador» típico, o sacerdote, nada sabe — nada quer saber... Chamar «melhoramento» à domesticação de um animal é, para os nossos ouvidos, quase uma piada. Quem conhece o que acontece nas ménageries duvida que o animal «melhore». Debilita-se, isso sim; torna-se menos pernicioso, torna-se um animal doente em virtude da emoção depressiva do medo, pela dor, pelas feridas, pela fome. — As coisas não se passam de modo diverso com o homem domado, que o sacerdote «aperfeiçoou». Na alta Idade Média, em que a Igreja era efectivamente, acima de tudo, uma ménagerie, dava-se caça de preferência aos mais belos exemplares da «besta loira» — «melhoravam-se», por exemplo, os germanos nobres. Mas, qual era, depois, o aspecto de um tal germano «melhorado», encerrado num claustro? O de uma caricatura de homem, de um aborto: tornara-se «pecador», fechava-se numa jaula, estava aferrolhado entre ideias terríveis... Ali jazia ele, doente, triste, malévolo para consigo mesmo; cheio de ódio contra os instintos da vida, cheio de suspeita contra tudo o que ainda era forte e feliz. Em suma, um «cristão»... Em termos fisiológicos: na luta contra a besta, pô-la doente pode ser o único meio de a enfraquecer. Bem o compreendeu a Igreja: estropeou o homem, debilitou-o — mas pretendeu tê-lo «melhorado»..."
Friedrich Nietzsche, "Os Reformadores da Humanidade",
in O Crepúsculo dos Ídolos, 1888
Edições 70, 2002, Tradução de Artur Morão