O primeiro marido da minha trisavó era epiléptico. Quando tinha ataques metiam-lhe rolhas de cortiça na boca para não morder a língua. Por vezes uma rolha estava suja de vinho, normalmente tinto, mas ninguém parecia reparar, muito menos ele, que naquele estado não estava em condições de se pôr a saborear rolhas.

Viviam em Cascais, na Rua Direita, por cima de uma charcutaria, propriedade dos pais dele. Era muito desequilibrado, o meu prototrisavô. Estava proibido de comer ananás, fruto que apreciava muito e que lhe provocava estados de loucura extática. Houve um dia em que não resistiu à chamada, comeu o fruto e endoidou. Meteu-se a brincar com uma caçadeira e feriu-se de morte.

A minha trisavó casou-se de novo, possibilitando o meu nascimento, um daqueles acasos, tal como o é o nascimento de qualquer pessoa. Não se casou grávida do louco, o que poderia introduzir um condimento apetitoso nesta história, se bem que teremos mais tarde a dose certa de filhos ilegítimos e prole abundante.

Portanto a minha relação com aquela falhada família primordial parecia ter ficado por aqui. De certa forma ficou. Mas andam por aí descendências que frutificaram por outros ramos da árvore e não consigo evitar interessar-me. Atrai-me aquela família que simboliza a minha negação teórica. Ou, no inverso, talvez porque a minha vida foi paga com a morte acidental de um palerma.

Cruzo-me muitas vezes com Titânio, olha-me de forma provocadora, sabe quem eu sou, eu também adivinhei a sua génese, mas não emito sinais de reconhecimento. Passo dentro do meu Ford Mustang vermelho de 1970 e tenho o impulso de lhe passar com as rodas por cima. Titânio é um jovem adulto, moreno, de mamilos carnudos e rijos, que se passeia pelas enseadas da vila num fato de banho branco reduzido que lhe molda os genitais.

Neste momento podemos estabelecer uma ligação entre ele e Kaytlin Kennedy, que já conhecemos uns capítulos atrás, aborrecida, de cabelo ruivo, vestida de preto. Estão numa casa onde entraram atravessando uma alameda de nespereiras, vendo ao fundo a fachada em azulejos psicadélicos, colunas em pedra, uma porta central branca. Está escuro lá dentro, a luz entra por frinchas estreitas. Estão os dois com uma monumental pedra. Titânio já não sabe com quem está. Não vê nada, está muito excitado e tropeça com Kaytlin, não se equilibram, riem-se sem fôlego, desesperados, interpenetram-se e flutuam pelas várias divisões da casa numa cavalgada de sexo suado, deitando os móveis ao chão.


Nuno Marques Mendes