Perante este conflito (psiquiátrico-psicótico) entre a vida de que se afastara e a vida de que não tinha a menor experiência, salvo em germe ou como esperança em si mesmo, só podia escolher esta última. Donde as suas primeiras impressões (sempre as melhores), esperança de coisas melhores, sentimento de parentesco, etc. Só lhe restava encontrar-lhes apoios, distorcendo tudo o que ameaçava desmenti-los. Era um trabalho árduo, mas agradável.

Cada hora passada nas enfermarias tinha de aumentar a sua estima pelos doentes e, ao mesmo tempo, o seu desprezo pela atitude livresca que se tinha para com eles, pelo conceptualismo pseudo-científico que se comprazia em avaliar o grau de saúde mental a partir do grau de contacto com a realidade exterior. Cada hora os ia aumentando.

A natureza da realidade exterior continuava a ser obscura. Os homens, as mulheres e os filhos da ciência sabem ajoelhar-se perante os factos de formas tão diversas como qualquer outro corpo de iluminados. Por conseguinte, a definição da realidade exterior, ou da realidade pura e simples, variava de acordo com a sensibilidade de quem se aventurava a entrar nela. No entanto, todos pareciam concordar que o contacto com ela, mesmo o contacto distraído do leigo, era um privilégio raro.

Segundo esta maneira de entender as coisas, os doentes eram descritos como «desmamados» da realidade, das benesses rudimentares da realidade leiga, se não totalmente, como nos casos mais graves, pelo menos sob certos aspectos fundamentais. O objectivo de qualquer tratamento era construir uma ponte sobre esse abismo, transferir o doente da sua estrumeira perniciosa para o mundo glorioso das quantidades discretas, onde reconquistaria a inestimável prerrogativa de se surpreender, amar, odiar, desejar, alegrar-se e chorar, de uma forma razoável e bem equilibrada, e consolar-se com isso na companhia de outros que não valiam mais do que ele.



Samuel Becket, Murphy, 1953
Assírio & Alvim, 2003
Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo