Boletim mensal da Associação Portuguesa de Designers, de 1994. Dirigido por Gonçalo Freitas e Gonçalo Falcão, editado por Marta Martins Pereira, com design gráfico de Paulo Ramalho e Rita Múrias. No ano seguinte Portugal e a APD receberiam o Congresso Internacional do Icograda (International Council of Graphic Design Associations). O facto mais saliente, neste boletim e nestes tempos, é não se encontrar o menor vestígio da existência do ciberespaço. Nem um modesto endereço de correio electrónico. Era a Idade do Gelo. Mesmo agora ainda estamos na Idade da Pedra.
Odeio telejornais
por Guidinha *
Se é esta a realidade vou já cortar os pulsos. Mas verificamos que cinquenta por cento do conteúdo de um telejornal é efectiva realidade. Realidade deprimente, escolhida a dedo. A realidade deprimente é a mais atraente e é onde a maior parte dos humanos se deixa afundar, por falta de opções, por vontade consciente ou por falta de imaginação. É o mundo-comezinho, o mundo-catástrofe ou o mundo-celebridade. Tudo da extracção mais bera.
Repetitiva, martela diariamente os mesmos assuntos, à semelhança de uma lavagem ao cérebro. Estranhamente viciante, quando deveria provocar repulsa, esta informação corresponde a uma necessidade mórbida e existencial dos telespectadores. Ali encontram amparo e contrapeso para as suas angústias, encontram vingança, encontram confirmação para as suas suspeitas, o que pensam ser a vida, não sabendo que ninguém sabe o que é, e que o que lhes oferecem é trabalhado para satisfazer a sua procura.
Os discursos exaltados que se ouvem num telejornal, usualmente de políticos ou de jornalistas, lembram fantasias literárias ou cinematográficas onde carrascos vociferam, com má cara, destilam a sua propaganda, exigem atenção, atiram instruções. São esmagadores ou sedutores falhados.
Os outros cinquenta por cento de um telejornal não são realidade. São uma elaboração, o resultado de informação deficientemente descodificada, o produto de mentes que habitam em circuito fechado no mundo eléctrico de écrans de variado tamanho. É informação-design, produzida com o objectivo concreto de ser facilmente mastigável, ela própria mastigada com facilidade pelos tele-informadores. Muita desta informação será em breve gerada por um software de computador, não precisará da mão humana, mesmo os temas serão escolhidos ao acaso, cálculo numérico simplicíssimo. Um caldo de rumores e informação colorida poderá estar na base do produto.
Como se compreenderá, só assisto a um telejornal quando sou obrigada. De resto, para mim, é uma não-existência. Não quero ser contaminada por aquele mundo. A mediocridade pega-se, aquela maneira de falar assustadora, tanto dos comunicadores como dos sujeitos de reportagem, sejam eles comuns, políticos ou outras vedetas. Esta invasão perturbaria os meus estudos, ameaçaria a minha personalidade. Existem muitos mundos e realidades, muito por onde escolher, ou realidades pessoais a construir. Este mundo dos telejornais é uma ficção de má qualidade. Acabe-se com ele.
* Mestre em Aspectos Urbanos
"I write to you, my dear friend, whom I cherish as much as life itself, with the unwavering certainty that this letter will surprise you — hopefully sparing you a grief too unbearable. I wish to inform you of the strange circumstances and the facts related to the disappearance of Joseph, your husband, and deliver into your hands what may have been left of his shadow.
Above all things, you must try to read this letter by giving it your closest attention. Only then should you be able to gaze upon everything that has survived the disappearance of this strange man, whom in some way you still love.
At first glance — such was your resolution in expressing the utmost detachment regarding this case —, I was inclined to suppose on your part the absence of all sympathy or goodwill towards me, and everything I insist on telling you.
Your world had to be severely agitated by the present time in which nothing has a persistent value. No date nor hour appear to be of any relevance anymore. But do remember, my dear, that you mean the world to me, and nothing to so many others. You ought not, for the sake of Joseph, to change your ways, for he was truly a free spirit. Clearly all of that seems to be of no importance to you. At night, in endless weeping, you have never ceased to ask yourself what good is freedom when you have nobody to love, and nothing to believe in.
As you are probably aware of, he had had a visit the night he disappeared. Up until now, nobody could discern who the visitor was. Well I do know who visited Joseph that night, but the time has not yet come when I should tell you.
Do you remember the man wearing grey who crossed Peter’s path that afternoon, at Mr. John’s? You may well imagine for the time being that he was the one who paid him a visit. Instead of pulling the most extraordinary objects out of his pocket, he forced Joseph to vanish into it, making him disappear forever more. Or you could imagine that it was me who killed him while diligently staring at him, causing his body to disappear — as in a magic trick.
You most certainly won’t believe such possibilities. Feel free to come up with any other, in order to justify some inner fear you deem too hard to explain. Be it as it may, this was definitely not my purpose in deciding to write to you. I much rather intended to make clear to you what Joseph left to the world, as a trace, inside that brown briefcase he stubbornly carried everywhere with him.
That same briefcase was found open, its whole content scattered about next to his clothes. It consists of a collection of images crammed with your presence, though at the same time full of so many others, and of himself. It is thus maybe not the strange facts of Joseph’s disappearance that I aspire to tell you by writing this letter. More than that, I wish to call upon the strangeness there is about a soul leaving behind, like a body of work, a set of images — you could no doubt call them a collection, if you so wish.
And yet, my dear, what do you know about this man? What knowledge do you possess on anyone? None, and even all that he left behind, that which has now become my duty to pass on to you, will not provide you with the least sign with regard to Joseph, even though you may have shared your life with him.. Clearly I should not send you these images, for you won’t make any use of them, and truly they are useless in every respect.
I most definitely will not describe them to you. Do observe them though, and judge by yourself. As for me, I will simply quote the beginning of a poem...
Rappelez-vous l’objet que nous vimes, mon âme,
Ce beau matin d’été si doux:
Au detour d’un sentier une charogne infâme
Sur un lit semé de cailloux…"
Ce beau matin d’été si doux:
Au detour d’un sentier une charogne infâme
Sur un lit semé de cailloux…"
Adriana Molder
"The Passenger"
Vera Cortês, Agência de Arte
Avenida 24 de Julho, 54, 1º Esq
Avenida 24 de Julho, 54, 1º Esq
Terça a Sexta, 11:00 - 19:00;
Sábado, 15:00 - 20:00
1 de Março a 19 de Abril de 2008
Das feições de alma que caracterizam o povo português, a mais irritante é, sem dúvida, o seu excesso de disciplina. Somos o povo disciplinado por excelência. Levamos a disciplina social àquele ponto de excesso em que coisa nenhuma, por boa que seja — e eu não creio que a disciplina seja boa — por força que há-de ser prejudicial.
Tão regrada, regular e organizada é a vida social portuguesa que mais parece que somos um exército do que uma nação de gente com existências individuais. Nunca o português tem uma acção sua, quebrando com o meio, virando as costas aos vizinhos. Age sempre em grupo, sente sempre em grupo, pensa sempre em grupo. Está sempre à espera dos outros para tudo. E quando, por um milagre de desnacionalização temporária, pratica a traição à Pátria de ter um gesto, um pensamento, ou um sentimento independente, a sua audácia nunca é completa, porque não tira os olhos dos outros, nem a sua atenção da sua crítica.
Parecemo-nos muito com os Alemães. Como eles, agimos sempre em grupo, e cada um do grupo porque os outros agem.
Por isso aqui, como na Alemanha, nunca é possível determinar responsabilidades; elas são sempre da sexta pessoa num caso onde só agiram cinco. Como os Alemães, nós esperamos sempre pela voz de comando. Como eles, sofremos da doença da Autoridade — acatar criaturas que ninguém sabe porque são acatadas, citar nomes que nenhuma valorização objectiva autentica como citáveis, seguir chefes que nenhum gesto de competência nomeou para as responsabilidades da acção. Como os Alemães, nós compensamos a nossa rígida disciplina fundamental por uma indisciplina superficial, de crianças que brincam à vida. Refilamos só de palavras. Dizemos mal só às escondidas. E somos invejosos, grosseiros e bárbaros, de nosso verdadeiro feitio, porque tais são as qualidades de toda a criatura que a disciplina moeu, em quem a individualidade se atrofiou.
Diferimos dos Alemães, é certo, em certos pontos evidentes das realizações da vida. Mas a diferença é apenas aparente. Eles elevaram a disciplina social, temperamento neles como em nós, e um sistema de estado e de governo; ao passo que nós, mais rigidamente disciplinados e coerentes, nunca infligimos a nossa rude disciplina social, especializando-a para um estado ou uma administração. Deixamo-la coerentemente entregue ao próprio vulto íntegro da sociedade. Daí a nossa decadência!
Somos incapazes de revolta e de agitação. Quando fizemos uma «revolução» foi para implantar uma coisa igual ao que já estava. Manchámos essa revolução com a brandura com que tratámos os vencidos. E não nos resultou uma guerra civil, que nos despertasse; não nos resultou uma anarquia, uma perturbação das consciências. Ficamos miserandamente os mesmos disciplinados que éramos. Foi um gesto infantil, de superfície e fingimento.
Portugal precisa dum indisciplinador. Todos os indisciplinadores que temos tido, ou que temos querido ter, nos têm falhado. Como não acontecer assim, se é da nossa raça que eles saem? As poucas figuras que de vez em quando têm surgido na nossa vida política com aproveitáveis qualidades de perturbadores fracassam logo, traem logo a sua missão. Qual é a primeira coisa que fazem? Organizam um partido... Caem na disciplina por uma fatalidade ancestral.
Trabalhemos ao menos — nós, os novos — por perturbar as almas, por desorientar os espíritos. Cultivemos, em nós próprios, a desintegração mental como uma flor de preço. Construamos uma anarquia portuguesa. Escrupulizemos no doentio e no dissolvente. E a nossa missão, a par de ser a mais civilizada e a mais moderna, será também a mais moral e a mais patriótica.
Ivo, Joana Rosa, José Loureiro, Margarida Dias Coelho,
Tiago Borges, Rui Valério
Central Europa 2019
Central Europa 2019
Plataforma Revólver
Rua da Boavista, 84, 3º
Terça a Sábado, 14:00 - 19:30
24 de Janeiro a 15 de Março de 2008
Curadoria: João Fonte Santa e António Caramelo
Rua da Boavista, 84, 3º
Terça a Sábado, 14:00 - 19:30
24 de Janeiro a 15 de Março de 2008
Curadoria: João Fonte Santa e António Caramelo
Imagens de Ivo, Margarida Dias Coelho e Tiago Borges
[Émon. Exercícios de estilo. 1] Setenta e oito quilos de peso, um metro e oitenta e nove de altura. Um rapaz saudável, de vinte e dois anos, um rapaz normal de sorriso franco, não muito aberto, como quem abre a boca para inspirar depois de uma corrida, satisfeito. O rosto simétrico, a testa à mostra, as orelhas salientes, à mostra.
Um grupo. Nenhum dos elementos tem as orelhas à vista. É o que lhes dá força. Sentimos os seus olhos semicerrados cravados em nós, as orelhas tapadas, sentimos a violência a embater-nos na pele, a massacrar-nos os músculos. Seres bestiais. Melenas castanhas. O gang dos tatuados. Mas só um deles é tatuado, com um braço coberto de estrelas em três dimensões, o outro braço com cruzes e fitas, e animais míticos, que lhe sobem para o pescoço. E para o peito: se lhe retirarmos a t-shirt vemos os desenhos caprichosos que lhe envolvem os mamilos, descem para o umbigo, para a cintura, escondendo-se dentro das calças.
Olhares de emanações ferozes varrem o caminho, já despiram o tatuado que segue à frente, queimando pequenos ramos de árvores e folhas secas, caídas. Ao fundo está Émon, de sorriso franco, semi-surpreendido e orelhas ao léu. Um fato verde de algodão percorre-lhe o corpo. Estremece. Arrepia-se, agarra-se à pele. Já os olhares se cravam nele, forçando. O gang levará Émon: está muito desprotegido, muito exposto.
O gang entrega não-crentes-renitentes no Lugar das Percepções Líquidas. É essa a sua função. Mapeia os campos, provoca incêndios, descobre vulnerabilidades. Émon é entregue. Não oferece resistência. É levado, agarrado em todos os membros, amachucado o algodão verde. Deixado à porta do Lugar. Amarfanhado e são. Os músculos recuperam a elasticidade e o sorriso monta-se de novo, franco. Sai de cena o gang.
Entra Joé, envergando um fato de banho de natação, preto com bolas laranja, que lhe realça todas as formas do corpo, sobretudo as pernas, portentosas coxas de carne rósea. Serve uma bebida viçosa a Émon, por exemplo um batido de acelga e coentros, e orienta-o no lugar. Encaminha-o para a Acção. A Acção que se lhe oferece. A Acção que o seu fato verde de algodão inspira. Joé observa Émon. Atribui-lhe um Curso de Cura em Movimento. Um estágio de patologias posturais de carácter interactivo que desenvolve a reflexão, anatomia e fisiologia, estabelece perguntas experienciais.
Émon e o algodão verde enfrentam dois sujeitos vulgares, de ténis brancos e gangas azuis, que têm enfiada na cabeça uma máscara de latão com diversos orifícios. As vozes saem sufocadas e pinga transpiração, que atravessa os buracos, escorrendo ou caindo em gotas. Ou salpicos, ou chuveiros, quando se entusiasmam e falam demais. Possuem o hábito irritante de falar ao mesmo tempo, de coisas diferentes. São uns monitores desesperantes e já têm havido queixas motivadas pelo seu desempenho criativo. Tentam convencer Émon de que a Acção de Cura que enfrenta se trata de um laboratório, onde ensaiará colocar a sua intimidade em público e o público em si. O corpo, a fisicalidade, o sabor, os cheiros entendidos como uma oferta. A mística do tacto, a experiência da espiritualidade numa entrega e numa relação óptima com o exterior. Os monitores cuspinham outras atmosferas intensas, fundem os discursos num só, ali, em frente de Émon, incrédulo, percepcionando.
Encontram-se os três dentro de um cubo branco implantado na floresta multipresente, caminhando para dois, em função da fusão da parelha. Um corpo torna-se contentor do outro, respiram-se, a pele perde fronteira: o resultado é uma esfera de latão com furos, expirando e exsudando sempre. Como Acção é obra! Como Aprendizagem é nulo. Como Percepção é irritante.
Émon experimenta agora, portanto, um pensamento carregado de irritação. É um cão raivoso e mostra os dentes, assentes em robustos maxilares, enquanto é levado, apertado, pela Milícia Radical. Continua a ser-lhe diagnosticada uma renitência. Manifesta gravidade e indisponibilidade de tocar e relacionar informações sensoriais inscritas nos tecidos dos corpos, da interioridade e da exterioridade. Émon é mergulhado num contínuo eléctrico que opera a fusão do seu ser com o fato de algodão que o cobre. Já longe dos olhares públicos, afastada a Milícia, desinteressada de si, mas electrizada, enrolada em fardas negras.
Electrizado também Émon que, pulsando, procura uma vítima, deseja uma vítima. Que virá a ser Joé, que emite um calor que se materializa em vermelho, ondas de vermelho que o sinalizam e o trazem à presença imediata. As calças do fato verde expelem uma arma perigosa que se introduz na mão esquerda de Émon. A arma dispara uma carga agressiva que projecta Joé a grande distância, num voo, de pernas levantadas, estatelando as costas no pavimento, deslizando as carnes saborosas, torcendo membros, introduzindo-se num arbusto e aí ficando, como que devorado. Tecidos rasgados, poses eróticas.
— Django
"Fiquei a vê-lo afastar-se, repetindo para mim mesmo as últimas palavras que ele dissera. Não havia crime em Estrella de Mar, nem tráfico de droga, assaltos ou roubo de automóveis? A verdade era que a povoação inteira estava ligada ao crime como a uma rede de TV por cabo. O crime insinuava-se em praticamente todos os apartamentos e vivendas, em todos os bares e clubes nocturnos, como qualquer pessoa facilmente deduziria do defensivo sistema nervoso de alarmes e câmaras de vigilância. No terraço junto à piscina, por baixo do apartamento do Frank, metade das conversas era a respeito do último episódio de arrombamento ou roubo.
À noite, ouvia o uivo das sereias dos carros da força de voluntários enquanto perseguiam os ladrões de automóveis pelas estreitas e tortuosas ruas. Todas as manhãs, pelo menos uma proprietária encontrava os cacos do vidro da montra da sua boutique caídos no meio dos vestidos que restavam. Os passadores de droga vigiavam como abutres as portas dos bares e discotecas, os saltos altos das prostitutas matraqueavam as ruas empedradas por cima do porto e as câmaras dos autores de filmes pornográficos provavelmente rodavam em duas dúzias de apartamentos. Havia crime em abundância, e no entanto o inspector Cabrera nada sabia, porque os residentes de Estrella de Mar nada comunicavam à Policia espanhola. Por razões que só eles conheciam, mantinham o silêncio, transformando em fortalezas as suas casas e lojas, como se jogassem um complicado e perigoso jogo.
O espectáculo do Renault a arder na noite excitara-me. Acordado pelas chamas que pareciam lamber o tecto do quarto, correra para a varanda e vira o habitáculo do carro acender-se como uma lanterna, o fumo a revolutear nos feixes de luz dos faróis dos outros carros que recuavam em busca de segurança. Estava ali a decorrer um dos ritos pagãos do mundo moderno, o incendiar de um automóvel, testemunhado pelas jovens da discoteca cujos vestidos cobertos de lantejoulas tremeluziam no clarão das chamas."
J. G. Ballard, Noites de Cocaína, (1996) 2000,
Quetzal Editores, tradução de Mário Correia
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