"— Perdoo-te — disse ele —, porque te considero como sendo meu filho. Um bom filho da puta, mas apesar de tudo meu filho. Espero que não tenhas esquecido o meu ensino desde que trabalhas no meio de pessoas distintas.
— Sempre procedi como tu me ensinaste. Só há uma coisa nova: as pessoas distintas distinguem-se sobretudo pelo tamanho das carteiras. Roubo-as e respeitam-me. Até os polícias com quem às vezes me cruzo me saúdam com deferência.
— Não duvido disso. São pessoas demasiado estúpidas para lerem a profissão na tua cara.
— E como poderiam fazê-lo? Estou paramentado com todos os ornamentos da prosperidade. Julgam-me rico. Neste meio, já se sabe que só os pobres são ladrões. É uma superstição que remonta à Antiguidade e que convém perfeitamente aos meus negócios.
— Ora aí está para que serve a instrução. Compreendo muito bem que um rapaz inteligente como tu não podia contentar-se com vulgares ratonices. Por Alá!, és o ladrão do futuro. Pode dizer-se que os teus anos de escola convieram perfeitamente à tua ambição.
— A escola só me ensinou a ler e a escrever. Esta magra instrução constituiu para mim o caminho mais seguro para morrer de fome na honestidade e na ignorância. Foste tu o primeiro a abrir-me os olhos sobre a podridão universal. Haver compreendido que o único motor da humanidade era o roubo, é essa a verdadeira inteligência. E no entanto tu não foste à escola. Desde que te encontrei, roubo com a consciência tranquila e o coração contente. Direi mesmo mais. Tenho a sensação de que com a minha actividade contribuo para a prosperidade do país, visto que gasto o dinheiro subtilizado aos ricos em diversas lojas que sem mim e os meus semelhantes iriam à falência."
Albert Cossery, As Cores da Infâmia, 2000
Antígona - Editores Refractários, tradução de Ernesto Sampaio