Vida Contemporânea — Revista mensal de estudos económicos, financeiros, sociais e literários. Director e proprietário: Cunha Leal (1888-1970). Francisco Pinto da Cunha Leal foi uma pessoa muito ocupada. Na década de 1910 foi director dos Caminhos de Ferro de Angola, esteve em França durante a 1.ª Guerra Mundial integrando o Corpo Expedicionário Português, voltou para ocupar o cargo de director-geral dos Transportes Terrestres. Apoia Sidónio Pais, é eleito deputado em 1918, participa na Revolta de Santarém de Janeiro de 1919. Na década de 1920 é ministro das Finanças, presidente do Governo, ministro do Interior, director dos jornais O Popular e O Século, reitor da Universidade de Coimbra, líder do Partido Nacionalista, fundador da União Liberal Republicana, apoiante do golpe de estado de 28 de Maio de 1926, opositor da Ditadura, governador do Banco Central de Angola. Em 1930 encontramo-lo preso, acusado de conspirar contra o Governo, e deportado para os Açores. Evadir-se-á, será amnistiado, em 1934-1935 dirigirá o jornal A Noite e a revista Vida Contemporânea, sendo deportado de novo em 1935. Nas décadas seguintes continua a dedicar-se à oposição ao Estado Novo.

[Fontes: Lexicoteca, Círculo de Leitores, Tomo XI; Manuel Amaral, O Portal da História, arqnet.pt]








A alma portuguesa caracteriza-se por uma doentia sensibilidade, que se manifesta por formas aparentemente contraditórias: por um lado, a exaltação hiperbólica das glórias do passado; por outro lado, a apreciação pessimista das misérias do presente. Somos como os velhos fidalgos excessivamente maltratados pelo destino, que se comprazem em exagerar a grandeza da sua queda, fazendo para isso subir a nível do ponto donde vieram e baixar o nível do ponto aonde chegaram. Somos ainda como o mendigo que, ao receber do transeunte parcamente caritativo a magra esmola, tem uma chama estranha a iluminar-lhe as pupilas e lhe diz com voz rouca e misteriosa: Ah! Se o senhor pudesse adivinhar o homem que eu já fui!

Há uma explicação plausível para êste modo de ser espiritual. A nossa história tem, como as histórias dos outros povos — nem mais, nem menos do que elas — altos e baixos, acções nobres e acções reles, façanhas heroicas e manifestações de poltronaria. Quiseram, porém, os fados que a trajectória portuguesa tivesse influenciado sobremaneira a evolução da civilização mundial e que, em grande parte, os nossos empreendimentos colectivos não estivessem em proporção com a nossa capacidade material, com as nossas possibilidades práticas de execução. Desta maneira, a história de Portugal surge como um fogacho, que se erguesse muito alto para logo quási se extinguir. Isto criou em nós a propensão para os sonhos épicos e para os contrastes bruscos da suma grandeza e da suma miséria.

Assim, pois, falta-nos equilíbrio espiritual e bom senso — qualidades aliás muito mais raras do que se supõe. Um exame de consciência, mesmo superficial, deve convencer-nos disso. Um grande esfôrço intelectual pode fazer-nos adquirir o sentimento das proporções, a noção das realidades universais, condição indispensável para que sejamos mais comedidos em quebrar a paz e sossêgo de que gozam nos sarcófagos das catedrais os «barões assinalados» dos tempos idas e para que possam tornar-se menos desageitados e mais eficientes os homúnculos fabricados em série pela fraqueza genética da era contemporânea. Oxalá as gerações presentes e futuras ousem lançar ombros à obra de resgate espiritual e de renovação material, requerida imperativamente pelas circunstâncias!

Que probabilidades de sucesso terá um empreendimento desta natureza? Carecemos de fôrça capitalista, carecemos de capacidade técnica, carecemos de preparação intelectual. A-par dêste passivo, muito para considerar, podemos inscrever no nosso activo alguns valores que não são também despiciendos. Temos um vasto domínio colonial, que nos permite esperanças de rehabilitação económica. Por outro lado, estamos assistindo neste momento, por êsse mundo além, ao curioso espectáculo dum capitalismo ou em transes de falência ou em via de mudar de pele, como os ofídeos. E, sobretudo, vivemos em época em que a consciência e a sensibilidade individuais e colectivas estão rompendo com os moldes clássicos. À primeira vista dir-se-ia que não poderia oferecer-se-nos melhor oportunidade do que esta para nos compenetrarmos dos interêsses, das paixões, das ideas e dos métodos de acção do homem contemporâneo, para nos aproximarmos dêle, galgando de vez a distância que dêle nos vem separando há muitas décadas.

O primeiro grande objectivo de qualquer programa de acção nacional tem de ser precisamente êste de conseguir a sincronização da mentalidade portuguesa com a dos povos civilizados. Todos os outros objectivos empalidecem e se tornam secundários em face dêste. Educar os elementos selectos da nossa sociedade, de modo a que se possam tornar depois os grandes apóstolos e propulsores da educação das massas, da sua europeização — tal é a idea que hoje se está enraizando em todos os sectores da vida portuguesa.

Se o acôrdo é quási unânime no que diz respeito ao enunciado do problema, já o mesmo não podemos afirmar no que se refere ao seu conteúdo. É que hoje em dia carece em absoluto de importância o tipo do europeu médio, que em tempos não muito distantes predominava, sob o ponto de vista espiritual e material, em tôdas as sociedades civilizadas do velho Continente. Os extremistas não passavam então de falanges reduzidas. Actualmente, nas massas populacionais da Europa o papel principal cabe a dois tipos irredutíveis, diametralmente opostos, a que correspondem duas mentalidades entre as quais não é possível estabelecer nenhuma espécie de contemporização.

Qual destas mentalidades deve ser tomada, como modêlo? Dividem-se, como é natura!, as opiniões. E, no meio da pugna acesa, quási não há lugar para os que, timidamente, pretendem entrincheirar-se em posíções ideológicas intermédias. Há, de facto, que constatar, com resignada calma, que, momentâneamente, é insignificante a função de todos quantos, não pondo limites à sua curiosidade intelectual, se não deixam, em todo o caso, arrastar pelo desejo de acção desordenada e frenética, característico da época contemporânea, e aspiram a que nem as suas ideas deixem de ter fôrça impulsora, nem o seu dinamismo deixe de ser sempre norteado por ideas consentâneas com «a eminente dignidade da natureza humana» — expressão que, a-pesar-de velha e revelha, não tem perdido em beleza com o uso.

Claro está que a onda do desvario há de ir perdendo em altura, à medida que se vá acalmando a tormenta económica que se desencadeou por êsse mundo além. A sucessão vertiginosa dos fenómenos económicos provocou a ruptura do equilíbrio espiritual e material que nos fôra legado pelo século transacto. Há que reconstituir novo equilíbrio com os materiais que a tempestade deixar amontoados no solo de civilizações que só podem renovar-se inteiramente pela acção providencial dêstes cataclismos. E a hora dos juízos calmos, que é preciso não confundir com juízos tímidos, há de voltar. A sua função educadora terá então a plena eficiência de que hoje, infelizmente, carece.

Teve a Vida Contemporânea a boa sorte de juntar em tôrno de si um escol de homens cultos, que estudam os acontecimentos do seu tempo com imparcialidade e interêsse, Alguns nomes eminentes do nosso reduzido sector intelectual deram já ao primeiro numero desta Revista a honra da sua colaboração. Outros virão juntar-se a êles, animados uns e outros de profundo amor pela sua terra, não o exibindo, porém, com gritos ou afirmações de incómoda estridência, mas com actos dignificadores da sua condição natural de portugueses.

Estamos assim colocando as primeiras pedras dum edifício, que virá, porventura, a ser modesto, mas a que a nossa paixão quereria emprestar linhas sóbrias e harmoniosas. O passado será evocado de quando em quando, com calma, sem histerismos patrioteiros, mas com a consciência do valor da continuidade histórica no país que, dentro da velha Europa, há mais tempo soube estabilizar as suas fronteiras, defendendo-as eficazmente sem o auxílio de invencíveis obstáculos naturais. O presente será encarado como é, com as suas misérias, que não pretendemos ignorar, mas também com as suas possibilidades, que importa não desconhecer. O futuro será idealizado como se nos afigura que deva ser.

As portadas do nosso lar estão escancaradas para todos os portugueses de alma lavada e aberta ao progresso, que queiram vir trazer-nos, para a obra educativa do agregado nacional, a sua contribuição, grande ou pequena. que seja, porque esta Revista não é feita para registar apenas as opiniões dos consagrados. Aqui confraternizaremos, aqui sonharemos em comum as prosperidades duma pátria rejuvenescida, dentro da qual o homem tenha a consciência de que possui uma forte individualidade, curvando-se, em todo o caso, às exigências da solidariedade social. E, quando os acontecimentos e os homens pareçam apostados a desanimar-nos, recobraremos alento na contemplação de panoramas mais distantes, de perspectivas mais sedutoras.

A Vida Contemporânea, grata aos bons portugueses que acamaradaram na suas primeiras páginas, aguarda confiadamente a visita dos muitos que ainda hão de vir.

[in Vida Contemporânea, n.º 2, Junho de 1934]