Entramos, portanto, numa nova era. Entramos oficialmente no futuro, com medidas do passado, e um passado de pesadelo, real ou ficcionado. Isto já aconteceu antes, o Estado asfixiante. Não é novidade. Um dia acordamos e vemo-nos cercados pelos dedos do Governo da Nação, que deixam marcas indeléveis em toda a vida social. Os dedos ocupam-se de tudo — além do habitual e compreensível tal como saúde, justiça e segurança, sobriamente — ocupam-se da planificação global da economia do país, orientam e acarinham negócios privados, introduzem-se nas administrações de empresas, influenciam furtivamente a acção do mercado de capitais, negoceiam directamente com investidores estrangeiros, recuperam empresas falidas. Cruzam-se connosco na esfera privada, dizem-nos o que comer, impõem-nos tecnologias, taxam-nos serviços que não precisamos. Justamente o que tinham prometido: governação socialista. Nós pensávamos que isso já tinha acabado, e achávamos estranho que sectores do partido que sustenta este Governo estivessem insatisfeitos, que ansiassem por mais socialismo, e eu que pensava que estavam equivocados — que mais poderiam desejar? O Estado já se ocupa de tudo, é uma nanny de pêlo na perna.
Sem qualquer dúvida, o actual Governo é socialista. À moda europeia, convenhamos, não de linha dura. Quem esperava um governo liberal enganou-se redondamente. Não há governos liberais na Europa. São todos dirigistas e controladores. A pouca responsabilidade que entregam à sociedade é por necessidade ou obrigação. Por necessidade porque não têm dinheiro para investir, porque têm défices pouco recomendáveis. Caso contrário aí estariam, a comandar por inteiro as economias nacionais. A actual recessão é um momento feliz para estas mentes voluntariosas.
Em Portugal todos estes factores estão ampliados. Porque é um hábito nacional este Estado grande e esponjoso, que além do mais é desejado por larga maioria dos cidadãos. E esta molécula expansiva precisa de controlar tudo para manter a sua integridade. Precisa de limitar a liberdade individual que põe em causa a coesão do colectivo — o colectivo estatal, burocrático, impante. Que necessita sugar tudo à sua volta para se alimentar. Esquecendo-se da função para que foi criado, preocupado com a sua pessoal sobrevivência. E o resultado é uma sociedade infantil. E o horror é a obsessão burocrática — porque mesmo simplificada e de moderna tecnologia o objectivo é sempre aumentar a eficácia do controle. E é este o risco: quando se deseja um Estado nanny, quando se dá tanto poder a um órgão de soberania, leva-se com o pacote todo.
Em alguns países as câmaras de vídeo são omnipresentes no espaço público e a discussão em torno da vigilância é acesa. Em Londres existe uma câmara para cada quatro habitantes. Mas não sabem o melhor. Eu até me rio — rio-me para as câmaras e digo adeus. Em Portugal instalou-se a vanguarda tecnológica e vamos desfrutar o inimaginável: o dispositivo electrónico de matrícula. Tem sigla e tudo: DEM. Um chip instalado em qualquer viatura autorizada a circular em auto-estradas, que identifica e transmite informações sobre o veículo e o condutor, acessíveis a diversas entidades, em diferentes níveis e com possibilidade de cruzamento de dados segundo complicadas e opacas disposições redigidas no Decreto-Lei 612/2008. A instalação é obrigatória e a despesa fica a cargo do cidadão. Qualquer possuidor de automóvel ficará marcado electronicamente. Uma tatuagem digital — um sofisticado fascist touch. Cada vez mais o Estado se torna um inimigo ou uma entidade da qual nos temos de proteger.
O objectivo inicial desta aventura, em 2008, era melhorar a segurança rodoviária e diminuição da sinistralidade. E para o Governo era tudo muito simples: tratava-se “um upgrade tecnológico da matrícula tradicional, permitindo evoluir do sistema de identificação visual de veículos para outro, mais avançado, de detecção e identificação electrónica dos mesmos”. Nada do outro mundo. Quase em anexo previa-se outra utilidade para o chip: o pagamento de portagens e outras taxas rodoviárias. Agora, em Fevereiro de 2009, o grande objectivo é o pagamento de portagens, tudo o resto foi suavizado. Não poderemos, depois de aplicada a lei, pagar portagens da forma que desejarmos. Temos o chip obrigatório em operação, pronto para acumular estas e outras despesas e operacionalidades que aditamentos sucessivos à lei decidirem — porque fabricar leis é a coisa mais simples e a que mais nos dedicamos em Portugal. Esta obrigatoriedade tem um nome: prepotência ou ausência de direito de escolha.
Agora estamos de luto. Como pudemos ser tão descuidados? Não deixámos claro que não queríamos este controlo. Não queremos o Estado metido na nossa cama – mas agora já não falta muito. Mas provavelmente a coisa também funcionará em sentido contrário, e os cidadãos cada vez mais quererão meter-se na cama com o Estado. Abre-se um fluxo imparável. Os cidadãos quererão vingança, quererão escapar a este assédio e arranjarão formas escapar ao cerco que se vai cerrando cada vez mais à sua volta – vão gostar do sabor do sangue. E não vão querer pagar para serem comidos. Irão preferir comer.
[Cinicamente o Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações anuncia numa nota de imprensa: “O DEM é um projecto inovador com impactos positivos na modernização e competitividade da economia portuguesa: vem dinamizar o sector da telemática e criar simultaneamente uma oportunidade de negócio para as empresas na área das novas tecnologias na ordem dos 150 milhões de euros”. Deveremos agradecer?]
Podemos sempre continuar a reclamar:
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gseaopc@moptc.gov.pt (Secretário de Estado Adjunto,
das Obras Públicas e das Comunicações: Paulo Campos)