O crime, o crescimento da economia, a nanotecnologia, o medo, a pobreza, o sofrimento, o planeta, as matérias-primas, a violência, a religião, o corpo nas artes visuais, a mutilação, as marcas, África, os Sex Pistols, a precariedade do emprego, os novos desafios do capitalismo, a sociedade cibernética, os ordenados dos administradores, Hunter S. Thompson, a alucinação, a gente gira, a jihad, a juventude, a Europa, o mundo, os recolectores de lixo, a solidão, tem tudo a ver. Um mundo de perdição e de oportunidades.

Pode-se viver rodeado de chaminés mais altas do que as antenas de operadores de telemóveis. Recortam-se, negras, sobre um fundo de céu azul, de diversos azuis e magenta também, emitindo um fumo negro espesso que dominará o cenário. Ou uma inflexão, uma entrada noutro cenário, nos limites de um qualquer concelho onde, dependendo da direcção do vento, se espalha um odor pestífero, insidioso, que varre extensas áreas, entranha por qualquer pequeno orifício que encontre no caminho, atesta os organismos vivos de moléculas transgressoras. Lixo. Toneladas de lixo, uma festa de lixo. Percorremos estradas, a paisagem mudando, tornando-se árida, sem vestígios de vida, e então podemos correr de braços abertos pelo lixo que está a ser despejado por máquinas que se movem e está mais à frente a ser enterrado. E armazéns de concentrado de lixo, de embalagens em concentrado, armazéns sujos, cinzentos, em ruas sujas, e o ambiente irrespirável, habitado por seres com roupas iguais, mutantes que respiram o ar doente com aproveitamento.

Não há limites para a produção de lixo ou para a capacidade de se conviver com a imundice ou outros horrores, como a violência psicológica. Habituamo-nos a tudo. Habituamo-nos a viver em melhores condições materiais. E há esperança para larguíssimos milhões de seres humanos: a sociedade de consumo inventada a ocidente está a implantar-se por todo o lado onde haja terra e pessoas. Um modelo económico contagioso. Portanto um mercado global que se tem vindo a formar. Em 1989 envolvia à volta de mil milhões de pessoas. Em 2007 era três vezes maior. Em 2050 espera-se o abraço de sete mil milhões de indivíduos. Tudo no mercado. Outros rejeitam o mercado e rendem-se ao lixo. Em ambiente urbano. Em Nova Iorque os freegan fazem questão de se alimentar exclusivamente de produtos encontrados no lixo. Por opção tornaram-se recolectores. Têm empregos, ou não precisam deles, e pretendem reduzir o consumo ao mínimo, sendo esse mínimo colhido nos contentores dos supermercados. Os produtos são escolhidos com compostura, não sujando as ruas, escolhidos em sacos de lixo de supermercados seleccionados, lojas gourmet, boas padarias. Alfaces, frascos de molho, fruta, ervas aromáticas, conservas, sobremesas. Os EUA produzem 245 milhões toneladas de lixo por ano, sendo 12 por cento comida.

Continuando a avançar para ocidente, atravessando o Oceano Pacífico, damos de caras com o Japão. Nas grandes cidades cruzamo-nos com alguns exemplares de gyaru-o de fazer parar o trânsito. Os gyaru-o, ou rapazes-miúda, predominantemente heterossexuais, ostentam um bronzeado perfeito, pele cuidada, penteados elaborados. Adoram perder-se nas compras, em avenidas onde as boutiques se alinham ou em centros comerciais coloridos, escolhendo roupa e cosméticos. Não lhes escapa um eficaz exterminador de borbulhas, um gel de rosto que remove a barba, um solário portátil. A maquilhagem é subtil, faustosos são os cabelos, por exemplo compridos, lisos, em metade elevados, caindo em cascata seguros por portentosa pomada solidificante. Uma destas criaturas divinas pode encontrar-se a mascar uma pastilha fortificada com colagénio, vitamina C e coenzima Q10, que além de purificar o hálito purifica também a pele. [continua]

Nuno Marques Mendes


[Fontes: Joschka Fisher, Público, Wired, Esquire, The Los Angeles Times]