Encontram-se no bar do Hotel-Astro, antro elegante para encontros a meio da tarde. Nódi e o Príncipe conversam durante algum tempo, deixando-se conhecer, razoavelmente. Que tomam? Não se percebe daqui. Levantam-se. Pedem um quarto nos pisos superiores desta torre descomunal. O quarto é redondo, com uma cama igualmente redonda, descentrada, e mais nenhum móvel. Um terço da parede é um rasgo em vidro que ocupa todo o pé direito e atira raios de luz. Tudo é branco. Caem sobre a cama. Ou antes, atiram-se com peso e ficam imóveis, observando-se com cuidado e pormenor. Depois despem-se, gentilmente, mutuamente, agradados. Beijam-se. Depois entregar-se-ão a sexo mais duro, o que não será aqui descrito.

Quando tocou o alarme no pulso do Príncipe, estavam espojados no chão e admiravam a cidade, rente à janela. Seguiam corredores de árvores, que compunham alamedas de sombra, que compunham a cidade, alternando com ruas de sol, apenas pontuadas de árvores de fruto. Muito longe, muito para lá do deserto, estaria o mar. Põem-se de pé. Beijam-se. Vestem-se. Deixam para trás a brancura irradiante, decorada aqui e além de alguns pêlos púbicos orgulhosos da sua negrura. Já na rua, sobre rodas, o Príncipe carrega o sobrolho, chega o pulso à boca e comunica: “Vou a caminho”. E corta o ar, rápido como uma flecha.

Num fluxo, a equipa confluiu para um ponto, onde a Capitã esperava, com uma energia nervosa, pronta a deitar notícias. “O caso é o seguinte: uma família de média burguesia ocupou um apartamento de luxo num condomínio aberto, residência de férias dum big shot qualquer. Não querem sair. Mudaram-se com as bagagens todas. Querem mais qualidade de vida. A nossa missão é pô-los p’ra fora.” A Polícia-da-boa-vontade revela mais uma vez a sua relevância. A sua actuação é um modo limpo de resolver casos que terminariam invariavelmente com um tiro na testa de alguém.

Olham em volta. Estão sobre um campo de jardins e pequenos bosques, flora rude, de um verde intenso. Local fresco, da verdura brotam, a espaços, torres de apartamentos de luxo. Esculturas de pedra que se enterram no verdume. Rolam sob a cerrada sombra, desnudos, tangas negras ao relento, assolados por calafrios.

Tudo agora se passará em grande velocidade. Sobem à torre, batem à porta, a Capitã arremessa a porta contra a parede com estrondo e grita: “Polícia-da-boa-vontade!” E entram. Estão satisfeitos. Já estão lá dentro. A casa é sua. Estão à vontade. O Príncipe agarra-se à sua unidade móvel de conversação, outros enturmam-se e aceitam já comida.

A casa está cheia, há uns cunhados de visita. A miudagem corre, tropeçando nas pernas dos adultos. Vê-se que os ocupantes estão plenamente instalados. A decoração alterada. Trouxeram consigo colchas de renda e bibelots. E a cozinha, a alma da nova casa, labora já a todo o gás. Há um corrupio de mulherio. Fritam-se camarões em azeite e alho e em breve sairá um spaghetti al gamberetti. Outras senhoras acotovelam-se à volta de carnes, molhos, massas que batem sobre a pedra. Na sala de jantar uma grande mesa elíptica enche-se de valiosas peças de gastronomia. Alguns destes squatters comem sentados, imparáveis, outros vagueiam e juntam-se em grupos, calam as crianças ou dirigem-se à cozinha e todos confraternizam honestamente com os policias. Estão num transe alimentar, e não serão incomodados. Não se desconcentrarão. A Capitã aceita um gaspacho à alentejana. Os outros atiram-se às entradas, que ainda há e em grande número. Pratinhos de grão com bacalhau, tiras de pimentos assadas, fígado de coentrada, linguiça frita. Migas de broa.

O Boi Louro toma a cozinha e sai com um leite-creme queimado e muitas reprimendas e gritaria. As mulheres indignam-se: “o doce é depois, grande javardo!” Ele não se incomoda e distribui beijos chocarreiros pelas reputadas especialistas. E faz alarde: está magnífico! Solta rugidos. É o elemento mais bárbaro da equipa. Louro e branco, é o que tem o bronzeado mais fraco. Tem um corpo possante e aparece sempre como um trovão. Chamam-lhe também Gato Capitalista. Uma fera. Em breve insatisfeito com o doce mete à focinhada procurando algum prato de carnes fumegantes, cheirantes, impantes e bem regadas. Mas sobre a mesa repousam unicamente pratos de peixe. Passa os olhos por uma açorda de bacalhau bem regalada de coentros, alho, azeite e sal. Uma beldade ruiva vestida de amarelo coloca-lhe em frente do nariz um arroz de lapas. Segue-a e conquista um honesto borrego assado no forno. O que lhe faz uma sede bestial. Inaugura então os tintos com um Churchill’s de 1999. Douro ferrenho, firme e elegante. Serve primeiro a Capitã e atira-se depois aos golos, fazendo o vinho girar na boca e engolindo depois. Abre de seguida a boca para introduzir mais um naco de borreguinho. Está de meter raiva, inigualável.

E assim esta gula despropositada vai tomando conta de todos naquele apartamento. Vejam o Príncipe, muito direito sobre os patins, de rabinho espetado. Olhando de cima, num lento descer de pálpebras. A tempos perde a pose e ataca uns acepipes que o tentam. E que mastiga, olhando para os lados. O Tio Zé, sentindo-o tão delicado, chega-lhe a travessa de polvo ao alho. Pernas de polvo dispostas no prato em raios de sol, intercaladas de rodelas de tomate muito vermelho e o centro coroado de agriões. Tudo regado com azeite. O mancebo desliza e rapina um tentáculo, que segura com cuidado para não se sujar na gordura. Lambe os dedos. Vê passar leitões, lebres, pombos, favas guisadas com enchidos. O apartamento enche-se de fumos, odores, o ambiente espessa-se, com uma electricidade alimentar, vibrante. Opera-se um ritual mágico da natureza, onde seres vivos recarregam a energia, renovam o corpo, os tecidos, o sangue e ficam impantes de nova vitalidade, quase umas tochas energéticas, luminosas, com um fervor místico. Quando correm à casa de banho continuam a favorecer altas temperaturas, um comércio energético, resultado de fermentações e putrefacções que formam vida nos esgotos e alimentam a casa. Gases que se escapam das retretes unem-se à matéria brilhante que começa a sobrevoar as cabeças dos gulosos.

Voltando atrás, noutro ponto da cidade, temos Nódi. O anel que usa na mão direita já vibrara e, obedecendo a uma ordem sua, materializara à sua frente e em tamanho pequeno uma espécie de génio da lâmpada, um pequeno ser virtual seu conhecido, que lhe apresentava um esboço duma ocorrência a investigar: uma traficância de interesses no mesmo prédio onde a Polícia-da-boa-vontade actuava. Patina. Muda de roupa. E ruma ao matagal.

O seu faro jornalístico leva-o primeiro à porta do apartamento orgíaco. Cheira-lhe a esturro. Depois sobe ao andar de cima, ao apartamento Sul, faz-se sexy e entra na civilizada reunião. Veste calças pretas, camisa preta de tecido fino que se cola ao corpo, que se abre e denuncia o peito musculado e o tronco esguio. Assim a elegância em pessoa, o corpo moreno (mesmo na marca do fato de banho), está de matar. Calça patins. Desliza, volteia e insinua-se. Avança, capturando imagens com o anel, e uns aparelhos que vai espalhando pelo apartamento transmitem imagem e som em tempo real para um computador situado noutro apartamento longe dali, no último andar de um bloco escultórico de ressonâncias Inca. Estas imagens farão escândalo no próximo Telejornal. Gente bem vestida, grandes especulações, grandes tramóias. Formarão a Coluna de Nódi na edição da noite do jornal onde trabalha, igualmente chamado Telejornal.

As suas reportagens são compostas unicamente por imagens. Acumula objectos, retratos dos litigantes, do local do crime. Quando chega cedo ainda apanha a acção. Está por sua conta. Desvia-se das balas, lesto, são admirados os seus golpes de rins. Certas vezes Nódi entra em directo com as suas reportagens-sensação. É um estrondo. A sua presença deixa os telespectadores de cuecas húmidas. Põe a sua vida em perigo nestas missões intrusivas. Qualquer televisor ligado o poderá fritar num segundo. Mas o espectáculo merece o risco.

Uma rede de divulgadores informa-o de importantes ocorrências. Uma rede de geniozinhos virtuais que o saúdam com alegres notícias, prenúncios de prósperas devassas. E assim percorre toda a cidade. Vai conhecendo todos os ramos da Polícia. É uma aparição fotogénica. Gostam dele.

Está então Nódi no apartamento de dondocas e tudo está muito chato. Já estavam tramados, apesar de não o saberem, e para si já não eram notícia. Dá um sorriso e retira-se. O andar de baixo atrai-o. E os aromas são muitíssimos. E a ginástica da tarde com o Príncipe deixou-o esgotado. Tem muita fome.

Em baixo, justamente, a mistura de aromas estimulava glândulas, o calor que se desprendia da cozinha, dos cozinhados e dos animais que tudo abocanhavam amolecia o cérebro, causava lassidão e puxava aos doces e aos refrescos alcoolizados. Fizeram a sua aparição o bolo de requeijão e o bolo rançoso logo seguidos dos explosivos encharcada e barriga de freira. Mas a estes ainda se atropelavam pratos de carne imparáveis, que se produziam na cozinha descontroladamente. A casa entrara em curto-circuito. Comida chamava mais comida. Um desenjoativo pollo al limone, com o frango bem afogado em limão, saindo douradíssimo do forno, trazia já de arrasto um folar de carnes transmontano que vinha fumegante soltando o perfume em grandes golfadas. A um canto, o Príncipe, de perna traçada, açambarcava uma pratalhada de sopa de tomate com azeitonas pretas inteiras. Era o único que se mantinha calmo, porque o ambiente de estábulo que se concentrava no apartamento e que respirava uma perigosa energia punha todos nervosos e impacientes. A Capitã já não comia. Dava voltas. Os outros comiam sempre, com olhares rápidos, com as mãos. A redonda Marquesa do Balde colocava restos em tupperwares. As criancinhas, bichos acossados, colocavam-se debaixo das mesas, uma floresta de olhinhos brilhantes sobressaía no negro, temendo a voragem. Agarravam-se às pernas do Tiger, sempre bom, já com os caracóis espavoridos, os olhões atentos e bons também.

A Capitã dispara então a frase que corre o risco de se tornar clássica: “Tou a ver que tenho de ser eu a iniciar a acção. Como sempre. Querem levantar os cus gordos e fazer alguma coisa?”. Mas é tarde demais. Ouve-se um grande estrondo, da cozinha saem cuspidas todas as mulheres, levando tudo à frente em fumos e vapores. Esta explosão intestinal tudo projecta, rebenta com portas, arrasa mobílias, arrasta humanos que se esborracham contra paredes, se esfolam nas vidraças quebradas. Pelas janelas voam empadinhas de veado, fogões, gordos. A casa é um odre cheio, tudo expele. Dentro, agarram-se onde podem.

Nódi abre a porta em sintonia com a ruidosa detonação e é sugado para o interior. Segura-se à ombreira, radiante, de corpo no ar. Reconhece os efectivos policiais, o seu olhar foca de imediato o Príncipe. Acertou em cheio. E já fotografa, com o anel em flashadas.

Não tem mais câmaras-directo. Mas traz no bolso um aparelhinho, um último recurso, que regista qualquer imagem permitindo-lhe também o directo. Este aparelho fotografa, digitaliza provas, pequenas pistas, filma. Também pode fazer registos de voz, mas Nódi não o considera amiúde. Acha sempre qualquer tipo de imagem superior a qualquer tipo de texto. E segue, esforçando-se nos enquadramentos, realiza algumas entrevistas filmadas. Corta o som, são mímicas que filma.

Agora tudo acalmou mas uma ventosidade cheirosa ainda anima o local e dificulta a acção das equipas de socorro que entretanto chegam. O Príncipe adianta-se-lhe.

Príncipe – O que é que estás aqui a fazer?
Nódi – Investigo.
Príncipe – Vai-te embora. Vais estragar tudo.
Nódi – Parece-me difícil. Já não há nada p’ra estragar.

Recebe instruções do Telejornal. Vai entrar em directo. E quando se coloca em frente da câmara e faz o seu comentário, Nódi evidencia um mamilo que se descobrira. Está vertiginoso e deixa perceber a desolação que o rodeia, filma o fim de festa para os seus telespectadores. Os convivas que se levantam saindo de fardos de comida, a acção dos enfermeiros que levam ao hospital os sobreviventes, o esterco que inundou os campos vizinhos, derramado pelas janelas. Da comida não se aproveita nada. Parece mastigada e digerida. Tudo tão sugestivo como as caras dos squatters, que ficam registadas, caras cheias, inocentes, arregaladas, próximas da náusea, de gente repleta até à goela, de alimento, ar e outros gases. A sua Coluna no jornal da noite estará repleta de escabrosos exclusivos: a sua entrada no apartamento, o eclodir da explosão flatulenta, colorida, veloz. Vasculha mais um pouco no lixo. E abandona a cena.

Os policias voltam para a piscina do costume e colocam-se à sombra dos limoeiros, digerindo a pesada refeição. O Príncipe, ele, não descarrega o sobrolho. Nem quando se sobressalta com uns aborrecidos arrotos.


Nuno Marques Mendes