[Émon. Exercícios de estilo. 2] Na noite, o carro avança, em solavancos, descapotável, no escuro. O garoto avança cautelosamente, evitando os buracos, com o cotovelo esquerdo de fora pousado na porta. Tem os lábios entreabertos e recebe a brisa marítima na cara. Agitando os cabelos curtos e macios. Trava à beira da falésia. É uma noite quente. O fato verde que veste torna-se mais sexy. Mais reduzido, deixando-lhe parte do peito descoberto, os braços despidos, o tecido colado ao corpo. Émon inclina a cabeça para trás e sente-se muito bem. O mar ronrona. Émon respira fundo, respira livremente.

Há um rapaz de nariz no chão, com umas sardas, que por ali passa, com olhar esquivo atrás de uns óculos brancos foleiros com lentes espelhadas. Anda por ali a rondar, à volta do carro de Émon. Com os óculos postos pouco vê, tem como que uma neblina à sua frente, ampliada pelo efeito dos tranquilizantes que tomou com álcool. De certa forma flutua e tacteia num sonho a preto a branco, cheio de grão. Ele mesmo veste de preto, uma t-shirt que lhe realça a brancura dos braços, um dos quais, o esquerdo, é o suporte de uma pulseira de cabedal trabalhado com um floreado oriental. Veste calças de ganga e usa dois cintos, finos.

Este rapaz incomoda Émon. Ocupa-lhe espaço vital, perturba-lhe a concentração. A sua presença configura-se como um perigo, por ali a tropeçar, a fazer xixi nos arbustos. A atender telefonemas que parecem chegar de uma esposa preocupada. O rapaz tão novo é casado? Émon range os dentes. Está irritado. Aproveita um dos telefonemas para sair, leve, agora que o outro está de costas. Avança de luzes apagadas, incógnito, aliviado.

Agora um cheiro intenso e enjoativo eleva-se da falésia. Um cheiro insidioso, palpável, que cerca e afecta o cérebro. As flores do mal soltam-se e tomam de assalto o cenário. Émon acelera. Atrás de si, ao fundo, move-se um carro preto, comprido, de formas rectilíneas, como uma caixa. É o carro do outro rapaz, chamemos-lhe Doéglac. Aproxima-se com apreciável velocidade. Émon é seguido. Tem de pensar muito depressa: traçar um plano de despistagem eficaz. Depois já não pensa, só age.

Acelera pela estrada marginal, cortando a brisa, cortando a noite quente. Afasta-se da linha do mar fazendo um ângulo de noventa graus. Agarra bem o volante, com as duas mãos, para não voar. Transpõe o campo de agaves com estrondo, no piso irregular, desviando-se das gigantes suculentas: feixes de lâminas de espada verdes que do seio lançam um membro direito ao céu que se abre num ramo de flores amarelas. Cada embate nos agaves é impiedoso. São plantas sobredimensionadas, cada choque amolga o carro, fere a planta, lança um jorro de seiva verde. Doéglac dispara, não vê nada, imerso na neblina narcótica. Por engano atira-se, com o carro, para cima de Émon, proclamando um rugido bestial de motores, uma pancada feroz no dorso que atira o outro carro para longe, magoado. Numa nuvem de terra, pasta vegetal e ferro-velho prossegue a luta que se prolonga no tempo, teimosa.

Para trás fica o campo de agaves e um rasto de destruição, o rasto de dois automóveis que se maltratam. Émon desejaria esmagar o automóvel que transporta aquele rapaz de cabeça baixa e olhar furtivo, escondido atrás de uns óculos escuros e atrás de um pára-brisas. Esmagá-lo contra uma rocha ou atirá-lo no vazio. Mas entram na cidade. Escura. Um labirinto de ruas estreitas, logradouros, pequenos jardins. E perdem-se. Perdem-se um do outro. Émon desliga as luzes, encaixa num acolhedor enconderijo, defronte da casa de uma antiga namorada. Está eriçado e ofegante. O corpo suado. O fato verde, molhado, inicia a refrigeração. Deixa-se capturar pelos estofos, que lhe estimulam os músculos, invasivos. Deixa-se deslizar, deixa-se levar, flutuando. Mole, aéreo, cego.

Noutro local levanta-se uma humidade nascida no mar. As flores do mal estão em plenitude, emitindo fosforescências de caprichosas cores. O aroma intensifica-se com a concentração activa de água na atmosfera. O odor macabro espalha-se e chega longe, atraindo Émon, que volta às ravinas, sorrindo. Abandona o carro maltratado, atira-se, morde o pó, arrasta-se na direcção das rochas, rasgando o fato verde, rejubilante ele também, sangrando a pele, entrando em comunhão com o solo. Tornando-se um entranhado de terra, vegetação, maresia e sangue. De rastos no chão, na noite.

Não sei porquê, mas acho que escondido na noite há alguém que se excita terrivelmente com esta situação. Talvez alguém com uns óculos farsolas, arfante, com a mão dentro das calças.


Django