2003. Marca: Patrick Cox Wannabe. Fotografias: David LaChapelle. Manequins: Sophie Dahl, Ruth Crilly e Chris Shuh
Podemos ter a tentação de pensar que existem paraísos, ou que existem culturas ou povos impolutos e cheios de dignidade, que nos fazem corar de vergonha. E podemos facilmente constatar que tudo não passou de um mito, uma ideia construída. Impor-se como padrão de exigência e exemplo a seguir é uma questão de atitude, de fabricação de imagem. Uns colocam-se numa posição de superioridade, outros de subserviência. Quando na década de 1960 ou 1970 Portugal era repudiado por manter territórios ultramarinos com o estatuto de colónia, também alguns dos países que se encrespavam mantinham (e mantêm ainda) colónias, como a Grã-Bretanha ou a França. A Grã-Bretanha só reconheceu oficialmente a independência da Rodésia/Zimbabwe em 1980 e são muitos os protectorados e territórios britânicos espalhados pelo globo. Foi a raiva e a frustração da França causadas pela agonia do seu império que originaram a Guerra do Vietname, depois continuada pelos EUA. Ninguém dá lições a ninguém. E quem quiser que enfie o chapéu da insignificância. Ou da relevância.
Quando falamos em liberdade de expressão muitas vezes a diferença entre uma democracia e uma ditadura é só de quantidade. Num regime há mais liberdade do que no outro. Mas há sempre, mesmo nas actuais democracias liberais, censura. Naked Lunch, de William Burroughs, só pôde ser publicado na Grã-Bretanha em 1964. Parece que o problema era a fartura de palavras obscenas. Uns anos mais tarde, em 1996, o filme Crash, de David Cronenberg, ainda não estava distribuído na Grã-Bretanha. Havia grande contestação e aguardavam-se notícias do British Board of Film Classification. Que após demorados estudos (uma deliberação com 500 palavras) considerou que o filme não era ilegal e estreou em Junho de 1997. Mas foi proibido pelo Westminster Council, tendo como resultado não ser exibido em nenhum cinema do centro de Londres. J. G. Ballard, o autor de Crash (o livro, 1973) diria: “It says something about us, doesn’t it? We are not considered ‘adult’ and ‘mature’ enough to see this film. We’re too vulnerable; we may go out and behave badly as a result. Are they enlightened, these Virtual Reality Police? It highlights the nervousness of England: we’re trembling in our shoes at the thought of being corrupted by this film, which has far less explicit sex than any Sharon Stone film, far fewer car crashes than the Die Hard movies. In a sense, we’re policing ourselves and that’s the ultimate police state, where people are terrified of challenge.”
Recentemente, em 2003, foi proibido na Grã-Bretanha um anúncio da campanha de Primavera/Verão da marca de sapatos Patrick Cox Wannabe fotografada por David LaChapelle. Existe neste país um organismo chamado Advertising Standards Authority (“working to keep UK advertising standards as high as possible” é o lema). É um regulador de publicidade e recebe queixas: neste caso o referido anúncio, publicado na revista i-D, foi considerado inadequado por um leitor, parecendo “retratar um acto de sodomia”. A Advertising Standards Authority investigou e deliberou que, tendo em vista que quase cinco por cento dos leitores da revista têm idades entre os 15 e os 17 anos, o anúncio poderia ser seriamente ofensivo e não poderia ser publicado de novo. Patrick Cox estranhou, parecia-lhe um anúncio “colorido, divertido e bonito”. Além disso tratavam-se de ginastas que vestiam jockstraps, o que tornaria a penetração impossível. As outras peças da campanha não tiveram perseguição semelhante. A estrela, Sophie Dahl, manequim, actriz, escritora, celebridade, captou as atenções remanescentes. Por coincidência, Sophie Dahl esteve envolvida anos antes em polémicas escaldantes por protagonizar um anúncio do perfume Opium de Yves Saint Laurent, vestida unicamente com jóias e sapatos, deitada, branca, irreal, sobre veludo negro. Na Grã-Bretanha o anúncio foi retirado dos outdoors, em França foi totalmente proibido.
— Rodrigo de Almeida
[Fontes: guardian.co.uk, elmundo.es, vogue.co.uk, terrysouthern.com,
thefileroom.org, Kevin Jackson / Sub Dee Magazine / ballardian.com,
sophie-dahl.com, Wikipédia]