João Fonte Santa
"Todos os dias a mesma coisa - carro - trabalho - comer - trabalho - carro - sofá - tv - dormir - carro - trabalho - até quando é que vais aguentar? - Um em cada dez enlouquece - um em cada cinco rebenta"
VPF Cream Arte, Galeria de Arte Contemporânea
Rua da Boavista, 84, 2º
Terça a Sábado, 14:00 - 19:30
28 de Setembro a 3 de Novembro de 2007


É um universo de ficção científica, uma pós-realidade, um planeta desolado, desértico, de luz ofuscante. Onde mulheres de biquini se passeiam ao sol com metralhadoras ao ombro, rapazes jogam futebol defronte de escombros de antiguidades arquitectónicas, destroços da civilização ficam abandonados no terreno. A desgraça e a destruição são acontecimentos comuns, esperados e inevitáveis.

As imagens não parecem verdadeiras, parecem saídas de uma banda-desenhada, algumas até divertidas, pelo absurdo. Retratam um quotidiano extraordinário, difícil de acreditar. Demasiado excêntrico, demasiado bom para ser verdade. A homogeneidade técnica (tinta da china sobre prata) acentuam este efeito de unidade espacial e temporal. Este lugar apocalíptico. Que é um engano. Porque os acontecimentos são reais, os desenhos são cópias exactas de fotografias publicadas na imprensa, têm tempos diferentes e a acção situa-se em geografias diversas (Nova Orleães / despojos do furacão Katrina, Bagdad / tropas americanas aquarteladas, Yunong / China / renovação urbana, Sknyliv / Ucrânia / desastre em espectáculo de acrobacias aéreas). Uma mediatização em segundo grau.

São imagens que transportam uma potencial ou efectiva violência. Porque nos atraem tanto? Porque é que este conjunto de desenhos é tão atraente? Noutro lugar, fora do quotidiano ocidental de classe média, monótono e repetitivo, existe uma zona de desgraça, o sonho de qualquer telejornal, onde é possível encontrar uma estimulação que abana a normalidade e torna o mundo um lugar perigoso. Um mundo de excepcional emoção.

Mas a observação mais interessante chega-nos de J. G. Ballard, em entrevista a Paulo Moura (Público, 2005): “Os seres humanos têm um grande apetite por violência. Estão muito interessados na dor e na morte. Talvez por muito boas razões biológicas. O Homo Sapiens emergiu há uns cem mil anos; a linguagem há 50 mil; a primeira cidade, no Iraque, foi construída há dez mil anos. E nos últimos 50 anos vivemos numa sociedade completamente nova, altamente organizada e consumista, que pôs os nosso cérebros a apodrecer. […] A maioria dos animais selvagens que hoje associamos a África andavam à solta na Europa ocidental há 20 mil anos. Os nossos antepassados caçavam estes animais, lutavam com eles. Nós não somos os seres racionais que pensamos ser. Somos selvagens. Os nossos sistemas nervosos centrais, os nossos cérebros, os nossos instintos, os nosso reflexos estão adaptados à vida de um caçador solitário. Ou de grupos de dez ou 12 caçadores, não mais. Os seres humanos são perigosos e têm imaginações poderosas. De repente meteram-nos neste mundo, em que a individualidade é reprimida, em que não podemos fazer praticamente nada…”

E faz-se a ligação com o título da exposição (que é a tradução de um slogan pintado numa parede junto à linha do Metro de Londres entre Ladbroke Grove e Westbourne Park pelo grupo de agitadores radicais King Mob, na década de 1970. Outra frase: "I don't believe in nothing - I feel like they ought to burn down the world - just let it burn down baby".), que, por si só, é uma outra exposição. Sem dúvida, a vida já foi mais selvagem. Era mais dura, mais livre, mais inesperada, mais perigosa. Ainda não se tinham inventado os empregos, com horários certos e salários certos, somente trabalho e vagabundagem ou a sorte de ser um privilegiado.

Nuno Marques Mendes








A nossa civilização é organicamente individualista
Fernando Pessoa



A nossa civilização é organicamente individualista. É-o porque assenta em dois elementos: a cultura grega, que se pode definir como sendo o individualismo racionalista, e o capitalismo moderno, em que o fenómeno concorrência é distintivo. Sempre que a civilização tentou fugir ao tipo individualista, estagnou ou perturbou-se. Ora o regime concorrencial, desde que chegue a um desenvolvimento intenso, torna difícil a adaptação dos fracos a ele. Torna, com o acréscimo da instrução, igualmente difícil a adaptação dos ignorantes. Por isso os débeis e os incultos espontaneamente se revoltam contra ele. Revoltam-se exactamente porque são fracos, pois se fossem fortes adaptavam-se e lutavam. Revoltam-se exactamente porque são ignorantes. Revoltam-se porque têm o rancor do débil ao forte, do indolente ao activo. E como se revoltam? Revertendo espontaneamente a tipos anteriores de sociedade — ao tipo corporativo da Idade Média, rebaptizado de sindicalismo. E é de notar que esta reversão, este ódio ao individualismo económico, se revela nas duas correntes extremas — no integralismo e no bolchevismo. É um fenómeno patentemente reaccionário. Baseia-se o bolchevismo em dois dogmas — o livre arbítrio (que supõe que o homem é quem dirige os seus destinos, e que a palavra «liberdade» tem qualquer sentido absoluto), e no milagre (pois, pretendendo construir uma sociedade fora do egoísmo, da vaidade, da cobiça humanas — fontes de todo o progresso e de toda a vida social — pretende por isso mesmo suspender as leis naturais, e à suspensão das leis naturais é que chama milagre). Nestes dois dogmas — patentemente derivados do cristianismo — assentam os dois misticismos bolchevistas.O ódio feroz do bolchevismo ao cristianismo é bem o ódio de fanáticos a fanáticos, de uma religião a outra. Não nos iludamos, supondo que assistimos a uma luta de classes: continuamos na fatalidade europeia das guerras religiosas, das lutas de (...) desde que o paganismo caiu, com Juliano, e a paz religiosa abandonou o mundo.

in "O preconceito revolucionário"




































Hugo Canoilas, Thomas Kratz, Giannis Varelas
"Na vidraça há o ruído do diverso"
Fundação Carmona e Costa, Espaço Arte Contemporânea
Rua Soeiro Pereira Gomes, Lote 1, 6º D
Quarta a Sexta, 13:00 - 20:00
19 de Setembro a 10 de Outubro de 2007


O título é retirado do Livro do Desassossego, de Bernardo Soares, que é também o ponto de partida para este projecto conjunto que transforma a presença no Espaço Arte Contemporânea da Fundação Carmona e Costa numa experiência desconcertante e assustadora. Hugo Canoilas espalha metros de papel pintado pelas quatro salas, operação de camuflagem que transfigura o espaço, cria um novo ambiente, define percursos, viagens cromáticas. Esta intervenção depurada é depois ocupada pelos três artistas com achados, desenhos sujos, ruídos, colagens de obsessões. Temos um gabinete de raridades, absurdos e excrescências.

Na viagem de descoberta não parece óbvio quem fez o quê, exceptuando a intervenção maior de Hugo Canoilas (porque é um construtor de espaços habitáveis). E talvez nem interesse e deve ser por isso que as obras não estão identificadas: porque iria interferir na deambulação e dar-lhe um carácter museológico. Mas o impulso para a catalogação é mais forte e corri logo a buscar a folha de sala.

Todos os elementos se relacionam familiarmente e poderiam ter sido realizados pela mesma pessoa. Mas não se tocam. A integridade de cada um não é ameaçada. A superfície que desenha o espaço só é objecto de fusão e inscrição na intervenção de Giannis Varelas. Thomas Kratz intervém no próprio espaço criado sem o sujar, encostando-se unicamente, habitando-o. Por isso dizer-se que Hugo Canoilas criou um suporte para os outros artistas intervirem terá de ser entendido no sentido espacial: o espaço é o suporte.

A exposição prolonga-se num livro, Mas o contraste não me esmaga, editado por Nuno Faria. É construído sobre um pedaço do Livro do Desassossego, de Bernardo Soares, numa edição da Assírio & Alvim. O pedaço que vai da página 49 à 144 é utilizado como suporte físico de textos que se sobrepõem ao texto original, é invadido por manchas de tinta, desenhos e colagens que escondem porções das aventuras de Bernardo Soares, tornando-as ainda mais fragmentadas, realçando alguns excertos, resultando numa viagem que acentua o efeito hipnótico da escrita.

Nuno de Almeida Lima













João Pedro Vale
"Pernas"
Rua de Timor, 14 A
Todos os dias
27 de Setembro a 28 de Outubro de 2007


Somos um animal intrinsecamente voyeurista e exibicionista. Cultivamos a atenção. É uma coisa que fazemos. Como outros animais. Actualmente temos ao nosso dispor uma tecnologia avançada que nos permite exercer as nossas fantasias e necessidades, num ritmo quotidiano. Com descaramento ou furtivamente.

Na Rua de Timor temos um peep show de arte. Este mês João Pedro Vale colocou por trás do orifício um écran que reproduz um bizarro púbis, subversão das obsessões púbicas de Julião Sarmento. Mais não se pode dizer.

Nuno de Almeida Lima





Dr. Gloss
por Django


É noite. Está escuro. Percorrem-se os corredores da casa, o chão de pedra, as paredes nuas, pálidas, em direcção às traseiras e encontra-se uma escada, também de pedra, que desce. O Dr. Gloss dirige-se ao andar inferior, que fica por baixo do consultório. É uma cave. Entra numa divisão, onde o chão continua a ser de pedra, clara, fria. Não há elementos decorativos: unicamente um cabide de pé alto e um cubo preto onde repousa um estojo preto. O Dr. Gloss tira o casaco, a camisa, as calças, a roupa interior, coloca tudo no cabide. Tira os sapatos, claro.

Está nu, no silêncio. Está em pausa. Parece não pensar em nada, parece ter o pensamento congelado. Está de pé. Rígido. O seu corpo tem a dureza e a cor do mármore. Os músculos desenham-se, subtis mas vincados. E se nos aproximarmos encontramos rasgões na superfície, feridas com a carne à vista, já seca, a pele levantada.

Num passo alcança o estojo preto e abre-o. Retira uma seta em metal maciço, brilhante. É comprida, tem uma ponta triangular, afiada, e termina em duas asas. Sente-se planar. Muito leve. Tem a seta em seu poder, apertada na mão, aperta-a depois com as duas mãos, passa o seu calor para o metal. Os pulmões e o cérebro enchem-se de ar, o olhar vagueia.

Desce a seta, encostada ao tronco, e detém-se perto da cintura. Sente o músculo lateral com a mão direita, sente-lhe a firmeza, a vida: a mão direita empurra a seta. A seta atravessa a carne, perfura lentamente, exacta, aparecendo no exterior mais adiante. Gloss respira mais rápido, nascem-lhe tremores, nos braços, nas pernas, no peito. Surge-lhe uma tontura e cai.

O corpo está caído sobre a pedra, indefeso. Um fio de sangue dá cor local.