A nossa civilização é organicamente individualista
Fernando Pessoa



A nossa civilização é organicamente individualista. É-o porque assenta em dois elementos: a cultura grega, que se pode definir como sendo o individualismo racionalista, e o capitalismo moderno, em que o fenómeno concorrência é distintivo. Sempre que a civilização tentou fugir ao tipo individualista, estagnou ou perturbou-se. Ora o regime concorrencial, desde que chegue a um desenvolvimento intenso, torna difícil a adaptação dos fracos a ele. Torna, com o acréscimo da instrução, igualmente difícil a adaptação dos ignorantes. Por isso os débeis e os incultos espontaneamente se revoltam contra ele. Revoltam-se exactamente porque são fracos, pois se fossem fortes adaptavam-se e lutavam. Revoltam-se exactamente porque são ignorantes. Revoltam-se porque têm o rancor do débil ao forte, do indolente ao activo. E como se revoltam? Revertendo espontaneamente a tipos anteriores de sociedade — ao tipo corporativo da Idade Média, rebaptizado de sindicalismo. E é de notar que esta reversão, este ódio ao individualismo económico, se revela nas duas correntes extremas — no integralismo e no bolchevismo. É um fenómeno patentemente reaccionário. Baseia-se o bolchevismo em dois dogmas — o livre arbítrio (que supõe que o homem é quem dirige os seus destinos, e que a palavra «liberdade» tem qualquer sentido absoluto), e no milagre (pois, pretendendo construir uma sociedade fora do egoísmo, da vaidade, da cobiça humanas — fontes de todo o progresso e de toda a vida social — pretende por isso mesmo suspender as leis naturais, e à suspensão das leis naturais é que chama milagre). Nestes dois dogmas — patentemente derivados do cristianismo — assentam os dois misticismos bolchevistas.O ódio feroz do bolchevismo ao cristianismo é bem o ódio de fanáticos a fanáticos, de uma religião a outra. Não nos iludamos, supondo que assistimos a uma luta de classes: continuamos na fatalidade europeia das guerras religiosas, das lutas de (...) desde que o paganismo caiu, com Juliano, e a paz religiosa abandonou o mundo.

in "O preconceito revolucionário"