Sempre que alguém entra em discutir o carácter do povo português, pode adivinhar-se que, a certa altura da análise, dirá que uma das mais notáveis faculdades do nosso espírito é o excesso de imaginação. Por um acaso inexplicável, esta apreciação vulgar resulta justa. É certo que o português sofre duma imaginação excessiva.
Ora as criaturas de imaginação excessiva são fatalmente enfermas dum defeito; esse defeito é a deficiência de imaginação.
Isto pode parecer um paradoxo a quem ainda creia, ingenuamente, que há paradoxos neste mundo. A asserção, porém, é tão fácil de demonstrar que não vale a pena reparar no modo como se apresenta.
Tomemos um exemplo conhecido. É o caso desses literatos modernos que em sua obra se entusiasmam pelos loucos, pelos vagabundos e pelos criminosos natos, ou, em grau menos sangrento, pelos proletários "rotos e oprimidos" e outros objectos análogos. Ora todo o artista, se não por condição social, é, pelo menos, por temperamento, o contrário de tudo quanto os loucos, os criminosos natos ou os proletários realmente e verdadeiramente são. Sucede, pois, que a sua simpatia por tais criaturas só pode nascer da violenta necessidade de sair para fora de assuntos do meio em que vive — tanto no meio social, de gente pacata e apenas palavrosa, que cerca os artistas, como do meio, por assim dizer, nervoso, isto é, aquela disposição requintada e exigente que é a atmosfera espiritual em que o artista vive consigo próprio. E essa necessidade de sair para fora da atmosfera psíquica, onde respira, é manifestamente trabalho da imaginação excessiva. De resto, o género literário que esta espécie de autores vinca — assuntos excessivos, sentimentos exagerados, estilo complexo e doente —, tudo isso confirma que se trata dum fenómeno de excessiva imaginação.
Mas, se colocássemos um destes literatos entre criminosos natos reais, entre verdadeiros loucos ou entre proletários existentes, condenando-o, não a atravessar esse meio, mas a viver nele, o desgraçado só não fugiria, se o não deixassem fugir. A mesma requintada condição nervosa e imaginativa, que lhe faz o entusiasmo por esses meios, lho tiraria, se neles se demorasse.
Que explicação tem este fenómeno? Aquela que de entrada demos: a deficiência imaginativa que caracteriza os imaginativos em demasia. Se ao construir no seu espírito uma representação nítida dessas figuras que o atraem, o artista conseguisse imaginá-las a valer, com absoluta nitidez, tal nitidez equivaleria a um antegosto desses próprios meios, e resultaria, desde logo, aquele nojo por eles que um contacto real causaria.
Toda esta demonstração veio a propósito do excesso de imaginação do português. E o fim a que veio é podermos estabelecer claramente qual a terapêutica a aplicar neste caso. Com a demonstração, que fizemos, essa terapêutica ficou indicada. Aqui, como na homeopatia, simila similibus curantur, o excesso imaginativo do português, que tão daninho lhe tem sido, só pode ser curado mediante uma cultura cada vez maior da imaginação portuguesa. Educar as novas gerações no sonho, no devaneio, no culto prolixo e doentio da vida interior, vem a dar em educá-las para a civilização e para a vida. Sobre ser fácil e agradável, o tratamento é de resultado seguro.
O português é capaz de tudo, logo que não lhe exijam que o seja. Somos um grande povo de heróis adiados. Partimos a cara a todos os ausentes, conquistamos de graça todas as mulheres sonhadas, e acordamos alegres, de manhã tarde, com a recordação colorida dos grandes feitos por cumprir. Cada um de nós tem um Quinto Império no bairro, e um auto-D. Sebastião em série fotográfica do Grandela. No meio disto (tudo), a República não acaba.
Somos hoje um pingo de tinta seca da mão que escreveu Império da esquerda à direita da geografia. É difícil distinguir se o nosso passado é que é o nosso futuro, ou se o nosso futuro é que é o nosso passado. Cantamos o fado a sério no intervalo indefinido. O lirismo, diz-se, é a qualidade máxima da raça. Cada vez cantamos mais um fado.
O Atlântico continua no seu lugar, até simbolicamente. E há sempre império desde que haja imperador.
Nada há de menos latino que um português. Somos muito mais helénicos — capazes, como os Gregos, só de obter a proporção fora da lei, na liberdade, na ânsia, livres da pressão do Estado e da Sociedade. Não é uma blague geográfica o ficarem Lisboa e Atenas quase na mesma latitude.