De uma dama sei eu que toma banho de ratos. Ratos brancos, diga-se já, ela cantora, e assim mesmo só em noites em que interpreta a Thais.

Quando as luzinhas pestanejam no frontão da Ópera turva anunciando os debates da rameira de Alexandria com o pregador do deserto, quando um rebanho de velhotes feitos outrora à luxúria, e decanas várias, se aperta na entrada das bilheteiras por abrir, quando abrigados em palmeiras dispersas nas selhas da vizinhança já se afobam os criados nos jantares, Sibila Mauriac levanta o corpo da preguiceira onde dormiu refestelada todo o santo dia. Uma pancada no gongue logo atrai à roda as suas órfãs que são nove e escolhidas todas pelo formoso olhar, aspecto doentio, pela pequenez das mãos, tiradas todas de asilos da corporação dos vidros. E apesar dos bem grossos cortinados tilintam risos quando a Mauriac ordena enfim que esteja tudo a postos para o ritual do banho.

O dever de cada órfã é retirar uma peça, sempre a mesma, do trajo de Sibila Mauriac e arrumá-la no roupeiro à sua guarda. E as nove meninas tratam dos nove roupeiros que fazem toda a mobília do quarto com a preguiceira, as tapeçarias, os espelhos, correspondendo aos nove elementos perpétuos da roupa interior da cantora (a exterior, essa comporta outros, sempre diferentes).

Despida a Mauriac há que empurrá-la ao banho, pois em noites de canto é muito o seu cuidado a poupar-se de inúteis fadigas. Usam então as órfãs um carro angorá (melhor ainda se macaco-ruivo) cujo pelame arrasta no tapete loiro; numa cavidade feita ao corpo jaz dentro a Mauriac e vão as órfãs, para fazê-la engordar ainda mais, colhendo à volta bolinhos delicados de pistacha enquanto aos tropeções nas rodas, e à trela do veículo, trauteiam alegres o “coroa-te de rosas…” ou qualquer outra ária ao gosto da sua idade-ópera cuja atracção primeira é a Mauriac sua senhora.

Entre as paredes verde-água de um salão pentagonal, por baixo de um tecto de pergaminho translúcido que torna veladas as lâmpadas, a banheira é um lago esmaltado a bistre pousado nos mosaicos negros de cerâmica ornados de sécias amarelas e pervincas. Enfeitado ao estilo de Corinto, um largo tubo de bronze termina na goela aberta, nas orelhas baixas e bigodes agressivos de uma cabeça de leopardo, dando acesso a um viveiro de ratos dividido em três cochichos de soalho em corrediça, bastando puxar em baixo o cordão posto ao lado da banheira para fazer jorrar no tubo uma torrente infindável de bichinhos brancos.

Muitos amigos tem a Mauriac aos quais não proíbe em demasia a porta do seu banho. E aos cinco cantos da sala chega às vezes a ver-se um monte autêntico de cortesãos comprimidos para libertar à circulação das órfãs os arredores da banheira. É muito gorda, a Mauriac, muito branca a sua pele e de tal forma asseada que nem um pêlo saberíamos encontrar-lhe além da pestanas, sobrancelhas, de um sinal cabeludo que muito preza um pouco abaixo do mamilo esquerdo. Caem ratos numa chuva morna, correm a mulher toda zurzindo-a com os rabos pelados, arranhando-a aqui, além, com as unhas curtas e duras; e quando fatigados da agitação prolongada, já reduzidos a um manto de pele ondulada nas ancas de Sibila Mauriac, com a mão bela e molengona abre a cantora o ralo da banheira, puxa o cordão ao que sobra desse chuveiro de pêlo.

O médico da Mauriac, chinês franzino das Batignolles, contou-lhe um dia que esse banho de ratos, furões ou arganazes, era mais do que vulgar no Oriente antigo como estimulante da circulação nas belezas gordas com hábitos sedentários. Por sugestão apenas, ou mercê, o facto é que Sibila, a cantora, desde que entra em cena até surgir fata morgana atrás de um véu de tule para comoção do eremita santo, projectando fora de si mesma a carne pincelada a cor-de-rosa da garganta cristalina (verdadeira espuma glacial de uma cascata alpestre), não concede a menor trégua ao frenesi da voz, do gesto. E todos, mesmo os melómanos, que lhe ouviram a Thais, juram-se transportados longe no encanto do trilar da Mauriac, ainda que se diga inviável tão perfeito rouxinol levantar voo do mais fundo dessa garganta moldada em fortes acentos nortenhos.


(in Dans les années sordides, 1943)



André Pieyre de Mandiargues (1909-1991) nasceu em Paris, estudou arqueologia, viajou na juventude pela Europa e Mediterrâneo Oriental e viveu em Monte Carlo durante a Segunda Guerra Mundial onde publicou o primeiro livro. Regressou depois a Paris onde se juntou aos surrealistas e a André Breton. Publicou contos, poesia, ensaios de arte. Obra diversa, com um elemento unificador: o fantástico ou, nas suas palavras, pânico, no sentido de terror infundado. Obra de teor teatral, com cenários saídos de um universo mágico, de vivência quase mitológica, colada de mediterranismo, “banhada numa atmosfera sensual e ameaçadora” (Stirling Haig, “André Pieyre de Mandiargues and Les Pierreuses”, The French Review, Vol. 39, No. 2, Nov., 1965, pp. 275-280).