O quadro
por Guidinha*


Surpresa! Comprámos o quadro! Não era o que queriam? Agora já é nosso, já é do Estado, de todos nós portanto. Arranjou-se um dinheirito que tinha ficado do seguro das jóias da coroa roubadas aqui há uns anos. Mas todos exigiam esta compra, todos uns mãos largas, da esquerda à direita, de cima a baixo. O património nacional ficaria gravemente esburacado, seria indecoroso deixar o quadro fugir. Ou deixá-lo na mão de privados, que são uns egoístas. Na leiloeira ainda tiveram pena, podiam ter ganho mais dinheiro se houvesse licitação e inflação do preço.

E agora o quadrucho lá vai para o Museu de Arte Antiga, montam-lhe um altar e pode-se dizer aos turistas que temos mais um Tiepolo, ao lado de outro Tiepolo que já lá estava. Um casalinho. Uma “Fuga” e uma “Deposição”. Os visitantes do museu vão passar pelas obras, vão dizer “ah!”, e vão seguir em frente. E ficamos todos mais felizes, a pensar que vivemos num país como deve de ser. E fica mais feliz o vendedor do quadro, que já pode fazer mais umas viagens ou comprar outra porcaria qualquer, mais barata.

E a Ministra da Cultura pode deixar de fazer aquele ar comprometido, aqueles olhinhos de cão triste que ostenta cada vez que lhe exigem mais dinheiro que ela sabe que não tem e não pode dar. Confesso que tenho pena dela. Qualquer membro activo da elite cultural portuguesa, quando olha para a Ministra, só vê cifrões. Ou símbolos do euro. Não é coisa que se faça a uma pessoa. Tem a minha solidariedade. E declaro: senhora Ministra da Cultura: não quero o seu dinheiro.

Pós-comentário: verifico que a minha solidariedade não vale nada. A Ministra foi sacrificada numa operação de relações públicas. Que vá em paz.

*Mestre em Aspectos Urbanos