Cruzam-se no balneário. Diz Nódi: “Tens um corpo tão bonito, tão perfeito, pareces um príncipe, gostava de encher-te de beijos”. “Podes avançar”, responde o Príncipe, petulante e gracioso. Nódi chega por trás e beija-lhe os ombros, o pescoço, sobe para o rosto. O Príncipe sente-se endoidecer, como se a sua cabeça fosse explodir, uma vibração a arrepanhar-lhe cada músculo do corpo. Mas parece que alguém se aproxima. O Príncipe afasta-se rapidamente. Segreda-lhe ao ouvido: “Falamos depois”, e encaminha-se para a piscina.
O Príncipe entra no recinto, ou antes, sai para o exterior, muito seguro de si, mirando o seu corpo. Apregoa-se, vaidoso, os ombros movem-se com elegância. Rompe o sol e lança um olhar que abrange toda a piscina. Feliz local, soberba piscina. Ao longo das margens fazem-se grupos que conversam. Outros vão analisando o que se passa dentro de água. As suas presenças são alegres, ruidosas, sorridentes, estão em grande descontracção, energizados pelo sol. A passagem do Príncipe causa sucesso, cabelo muito ajeitado, alourado, pele cobreada pela exposição constante aos elementos. A graça! O focinhito! Chega junto da sua turma, já à distância gritavam por ele, atiravam bizarrias. Terminam o aquecimento e iniciam o treino, mergulhando um a um, e nadando desenfreadamente.
Mas esta turma é também uma equipa da Polícia-da-boa-vontade. Esta Polícia intervém em conflitos que necessitam de uma voz conselheira e calmante para plena resolução. Os desmandos são variados: um grupo de pessoas que se enfrentam à pancada, na via pública, motivados por qualquer questão mesquinha ou pitoresca; um assaltante que se barricou atrás do balcão de uma geladaria, recusando-se a sair, apesar de já não ter munições, nem reféns, nem ninguém que lhe sirva um gelado. O gelado será servido por um dos elementos da equipa, mas isto é lá mais à frente; outras vezes há pessoas que se engalfinham no trânsito, certo dia houve um ataque a um automóvel por populares linchardes, pedindo razões ao seu condutor, esmurrando-o, partindo tudo no interior do habitáculo. A Polícia-da-boa-vontade irradiou a cena com a sua presença luxuriante e apaziguadora. Os beligerantes foram conduzidos ao hospital, os carros rebocados, a equipa feliz.
Estava então a rapaziada a meio do seu treino quando o alarme toca no pulso da Capitã. A equipa é reunida. São dez elementos atléticos, bronzeados, nove masculinos capitaneados por uma fêmea enérgica. Há inteiramento da situação, que chega por rádio. Correm para os patins e correm para a cena do litígio.
A piscina é aberta para a cidade, tal como todos os equipamentos públicos. Construída numa pequena elevação, domina a parte baixa da urbe, de prédios pouco elevados e jardins. Do seu recinto saem troços de uma rede de finas vias para patinagem que se ramifica sem perdão, chega a todo o lado como uma praga, dando a ilusão de uma vilória que se percorre em poucos minutos e onde todos se conhecem. Os nossos heróis patinam, os corpos secam na deslocação, misturam-se com as multidões que por vezes se formam nas avenidas mais largas. Roçam as tangas pelo trânsito, o cuzinho rijo, o sorriso em riste.
Já chegaram. Espalham-se estrategicamente. É o Tiger que se acerca do infeliz barricado. Avança, moreno, soberbo, beto, medindo o cenário. Mesas e cadeiras pelo chão, um rasto de desolação que espalhou gelado, coberturas, enchendo o pavimento de cor. Não há sangue, não há feridos. Tudo uma delícia. Fala com o agressor sem cerimónia, uma conversa mole, quase o trata por “querido”. “Você isto, você aquilo”, “Vou-lhe servir um gelado”, “Escolho eu os sabores”. O outro mudo, a observá-lo preparar também uma taça para si, esganado que estava, a escolher a bolacha, o creme de amendoim. Lambuzam-se os dois de gelado. A confiança parece estar ganha, mas o personagem não sai detrás do balcão. Nada o demove.
“Eia!” A Capitã está farta de lambuziquices. Apossa-se de um bloco de gelado e atira-o ao assaltante. Que o apanha com cuidado. Num ápice come com todos os membros da equipa em cima, que o imobilizam, apertando-o fortemente nos braços. Despacham-no para o hospital, e a boa disposição volta à geladaria. Populaça vai entrando e cada um dá uma mão e ajuda na limpeza. Os polícias galhofam, provocam-se, dançam sobre os patins, servem-se de gelados. A música toca.
E eis que zarpam. A matilha da tanga negra rola pela cidade, cabelos ao vento, de volta à piscina. Passam por Nódi, que rola em sentido contrário. O Príncipe dissimula, segreda-lhe ao ouvido. Juntar-se-ão amanhã à tarde.
— Nuno Marques Mendes