No entanto, os pretensos impérios enfrentam uma desvantagem ainda maior. Já não podem contar com a obediência dos seus súbditos. Além disso, graças à herança da Guerra Fria, os que recusam obedecer têm agora acesso a armas suficientemente poderosas para manter afastados os Estados mais fortes. No passado, alguns países podiam ser governados por um número comparativamente insignificante de estrangeiros porque o governo de qualquer regime com poder efectivo era aceite por gentes habituadas a serem governadas de cima, fosse por nativos fosse por estrangeiros. O governo imperial, quando estabelecido, encontraria resistência provavelmente apenas por parte dos que rejeitavam qualquer poder estadual central, nativo ou estrangeiro, e que vivia geralmente em zonas como as montanhas afegãs, berberes ou curdas, para lá do controlo civil efectivo. E mesmo esses sabiam que tinham de coexistir com o poder superior do sultão, czar ou rajá. Hoje, como os antigos territórios franceses em África demonstram, a presença de um pequeno número de tropas francesas não basta, por si só, para manter regimes locais, como aconteceu durante décadas após a descolonização formal. Hoje, a totalidade do poder armado dos governos mostrou-se incapaz de manter um controlo indisputado do seu território durante décadas no Sri Lanka, em Caxemira, na Colômbia, na Faixa de Gaza e na Cisjordânia ou, já agora, em algumas zonas de Belfast. Há, de facto, uma crise geral do poder estadual e da legitimidade estadual, mesmo nos territórios domésticos de velhos e estáveis Estados europeus, como é o caso da Espanha e do Reino Unido.

[…]

A escalada geral da violência é parte do processo de barbarização que ganhou força no mundo desde a Primeira Guerra Mundial, e que discuti num outro trabalho. A sua progressão é particularmente impressionante nos territórios de países fortes e estáveis e de instituições políticas liberais (em teoria), onde o discurso público e as instituições políticas estabelecem distinção apenas entre dois termos absolutos que se excluem mutuamente, «violência» e «não-violência». Esta foi uma outra forma de estabelecer a legitimidade do monopólio nacional, por parte do Estado, da força coerciva, que acompanhou o desarmamento geral da população civil nos Estados desenvolvidos do século XIX, excepto nos Estados Unidos que, está visto, sempre toleraram um maior grau de violência na prática, embora não na teoria. Desde o final da década de 1960, os Estados perderam parte desse monopólio do poder e dos recursos e, em maior escala, o monopólio do sentido de legitimidade que tornava os cidadãos cumpridores da lei. Este facto, só por si, chegaria para explicar em larga medida a escalada de violência.


Eric Hobsbawm
Globalização, Democracia e Terrorismo (2007)
Editorial Presença, 2008
































































































































































































Rui Serra
"Quando nascer o Sol terás renunciado"
Galeria 111
Campo Grande, 113
Segunda a Sábado, 10:00 - 19:00
10 de Maio a 14 de Junho de 2008
















"Já notaram que figurar na capa da Time é receber o beijo da morte? A senhora Nhu apareceu lá quando o marido foi morto e o governo dela caiu. Verwoerd estava na capa da Time quando uma demoníaca serpente de fita magnética transmitiu a ordem para o matarem através de um correspondente deste jornal. Lia a Bíblia, era reservado, não tinha vícios, conhecem o género. De confiança, está lá tudo, é só ler.

Misturem-lhe portanto actualidades, peças televisivas, cotações da Bolsa, anúncios e transmitam na rua a sequência de zoadas transformada.

A imprensa underground representa a única oposição eficaz contra uma potência crescente e contra técnicas mais sofisticadas utilizadas pelos mass media do establishment para falsificar, desnaturar, citar fora de contexto, afastar como ridículo a priori, ou simplesmente ignorar e apagar para sempre: dados, livros, descobertas consideradas prejudiciais aos interesses do establishement.

Sugiro que a imprensa underground poderia desempenhar esta função bem mais eficazmente utilizando técnicas de cut-up. Preparem, por exemplo, cut-ups das declarações reaccionárias mais feias que se possa encontrar e rodeiem-nas com as imagens mais feias. Agora submetam-nas a tratamento disparates-baboseiras e ruídos animalescos e transmitam-nas na sequência de zoadas através de gravadores. Em cada número, edite-se uma página de mistura feita com as transcrições de um cut-up gravado de actualidades de rádio e de TV. Transmitam-se as gravações na sequência de zoadas antes que o jornal esteja nas bancas. Dá-nos uma sensação curiosa ver um grande título que tem estado a martelar-nos na cabeça.

A imprensa underground poderia acrescentar uma sequência de zoadas aos seus anúncios e fornecer um serviço de publicidade único. Intercalem-se canções pop com o produto, depois slogans publicitários e banalidades publicitárias de outros produtos e arrecadem-se as vendas. Quem duvidar do êxito destas técnicas que as ponha à prova. As técnicas que acabamos de descrever são utilizadas pela CIA e por agentes de outros países... Há dez anos faziam sistematicamente gravações de rua em cada bairro de Paris. Lembro-me do homem da Voz da América em Tânger e de uma sala cheia de gravadores e ouviam-se barulhos estranhos através da parede. Muito discreto, apenas um cumprimento à passagem. Não se deixava nunca ninguém entrar nesta sala, nem mesmo uma empregada. Claro, há muitos detalhes técnicos, tais como microfones direccionais de longo alcance. Quando se inserem no apelo à oração grunhidos de porcos, é melhor não se passear no mercado com um gravador portátil.

Um artigo de Richard C. French, que apareceu no New Scientist a 4 de Junho de 1970 (página 470) com o título As Artes Electrónicas de Não-Comunicação, fornece a chave de instruções técnicas mais precisas.

Em 1968, com a colaboração de Ian Sommerville e de Anthony Balch, peguei numa curta passagem da minha voz gravada e cortei-a em intervalos de 1/24 segundos numa banda-filme (esta é maior, portanto mais fácil de montar), em seguida mudei de posição todos estes pedaços de discurso gravado com 1/24 segundos cada um. As palavras originais ficam completamente ininteligíveis, mas novas palavras aparecem. A voz está lá sempre e podemos imediatamente identificar quem fala, O tom de voz também permanece. Se o tom é amigável, hostil, erótico, poético, sarcástico, morto, desesperado, isso nota-se na sequência transformada.

Não me dava conta nessa altura que utilizava uma técnica que existe desde 1881 — cito o artigo do senhor French — «Projectos de misturadores da palavra remontam a 1881 e o desejo de tornar ininteligíveis para terceiras pessoas as comunicações telefónicas e de rádio nunca nos abandonou desde então»... A mensagem é misturada na transmissão e reconstituída na recepção. Há muitos destes aparelhos para misturar o discurso a funcionar segundo princípios diferentes..."

[William Burroughs, A revolução electrónica, 1971
Tradução de Maria Leonor Teles, e José Augusto Mourão,
Vega, 1994]




























André Sier, Corrida Espacial #3 , no número b#21 do e-zine Vector






























 


































































Largo do Chiado, n.º 8
Segunda a Sexta, 12:00 - 20:00
25 de Janeiro a 18 de Abril de 2008

Curador: Ricardo Nicolau









Este fantasma iniciado e aparecido nos confins do Sei Lá Onde honrou-me com surpreendentes confidências antes de se evaporar para sempre. Isto porque podia falar comigo em inglês. O Kurtz original fizera uma parte da sua educação na Inglaterra, e — como ele próprio teve a bondade de me dizer — simpatizava com aquilo que devia simpatizar. Nascera de mãe meio inglesa e pai meio francês. Toda a Europa contribuíra para fazer o Kurtz; e desde logo eu soube com muitos pormenores que a Sociedade Internacional para a Supressão dos Costumes Selvagens o encarregara de fazer um relatório para sua orientação futura. E ele escrevera-o. Vi-o. Li-o. Era eloquente, vibrava de eloquência mas parece-me que excessivamente sublime. Dezassete páginas de letra apertada, que teve tempo de encher! Mas talvez o tenha feito antes de os seus nervos desafinarem — digamos — e ter-lhe dado para presidir a certas danças da meia-noite que terminavam com indescritíveis ritos e lhe eram — tanto quanto a minha relutância apurou do que várias vezes ouvi contar — dedicadas compreendem? — a ele, Sr. Kurtz. Mas era um bom naco de prosa. Embora à luz de posteriores conhecimentos o parágrafo inicial me pareça agora bem significativo. Começava com o argumento de que nós, brancos, tão desenvolvidos como estávamos, «por certo parecíamos [aos selvagens] fazer parte das criaturas sobrenaturais — e nos aproximávamos deles com um poder quase divino», etc., etc. «Pelo simples exercício da nossa vontade, podíamos exercer esse quase ilimitado poder em nome do bem», etc., etc. A partir daqui caía em plena exaltação e conseguiu arrastar-me com ele. Perorava magnificamente embora seja difícil reproduzi-lo, como devem calcular. Deu-me a impressão de uma augusta Benevolência a dominar uma Imensidade exótica. Fez-me vibrar de entusiasmo. Era o ilimitado poder da eloquência — das palavras — de nobres e incendiadas palavras. Não dava sugestões de ordem prática que interrompessem a corrente mágica das frases, a não ser que uma nota de rodapé na última página, evidentemente rabiscada muito mais tarde e com pulso pouco firme, pudesse considerar-se exposição de um método. Simplicíssima, como era, e no final de um comovente apelo a toda a espécie de sentimentos altruístas ofuscava-nos, luminosa e terrífica, como um raio num céu sem nuvens: — «Exterminai todas as bestas!» Curioso é reparar que aparentemente se esquecia do notável post-scriptum; pois mais tarde, e já senhor de si, várias vezes insistiu comigo para eu olhar pelo seu «panfleto» (assim lhe chamava), como se estivesse certo da salutar influência que iria ter na sua carreira. Tirei informações completas sobre estas coisas e também me vi obrigado, pela forma como tudo aquilo correu, a cuidar da sua memória. Fiz o bastante para ter agora irrecusável direito de o votar, se quisesse, ao repouso eterno do caixote do lixo do progresso, entre dejectos de toda a espécie e os gatos mortos — em sentido figurado — da civilização. Mas não fui capaz, estão a perceber?


Joseph Conrad, O Coração das Trevas, 1902
Tradução de Aníbal Fernandes, Editorial Estampa, 1983























































Largo do Chiado, nº 8
Segunda a Sexta, 12:00 - 20:00
23 de Maio de 2008 a 25 de Julho de 2008

Curador: Ricardo Nicolau

"Um homem entre quatro paredes", 2008
Projecção vídeo, cor, som mono, sem fim
Dimensões variáveis

"O cancro esconde-se nos cantos", 2008
Paredes de Pladur, madeira













[Émon. Exercícios de estilo. 5] Na casa cubista todos os planos estão quebrados. Caídos ou deslocados. De todas as vistas se observam os alçados metidos num só. De uma vista vêm-se todas as vistas. E às vezes alguns interiores. Um plano horizontal passa a vertical e Émon estatela-se no cimento fresco, amachucando-se. Amassando o polo verde e as calças verdes, que logo readquirem a sua elasticidade e postura descontraída, mas o rapaz de sorriso sincero enche-se de feridas e marcas negras no corpo, particularmente nas articulações. Agarrado a um joelho, não refeito da queda, precipita-se na direcção do céu azul, cai por andares curvos rasgados de massas rectilíneas, por uma abertura curvo-rectilínea de paredes duras, suaves e macias, em direcção ao azul, rodando sobre si, queda alucinada completada na fusão de todos os elementos, uma superfície preta espelhada. Preto brilhante, brancos e cinzas, mas sobretudo escuridão. A meio do plano uma criatura despida sentada num cadeirão, de costas direitas, iluminada por detrás. A luz cai-lhe na nuca espalhando-se pelos ombros em gradações de cinzas, entregando realismo à extensão da pele, revelando poros, pilosidades amigáveis, composição muscular em rotundidades. A criatura tem o queixo assente no polegar, o rosto em sombra, os pés descalços no chão, a pose alheia. Uma criatura número dois desliza, impecavelmente despida, expondo uma barra tintada de preto a meio do corpo e a zona superior em branco espesso. A criatura número um ergue-se, deslizando em direcção à dois que a recebe e se encaixa nela soltando uma aberração pelo pescoço, perdendo a cabeça em espirais destroçadas multiplicantes, formações replicantes que preenchem o fundo negro com invasões brancas de geometrias irregulares.

A cor regressa em tons amarelos e laranja. Uma fornalha estelar apresenta-se a Émon. Radiações luminosas que não o cegam, pela frente passam planetas vermelhos que se destacam, possuidores de um halo nos seus limites. Émon está espatifado, apresenta equimoses ruidosas e laivos de sangue. Está caído e mexe-se com dor. À sua direita há um grande rolo de manteiga, estriado, que emite calor. Desloca-se e absorve-o. Brilhos de espelho partido, realidades difusas dispostas num plano que Émon atravessa estilhaçando — seios rosa de mamilos carnudos e vermelhos onde os lábios se colocam, olhos, papoilas, pétalas, quadrados justapostos de diferentes cores. Émon penetra distintos objectos, é penetrado por outros, numa sucessão que não tende para um fim, chicoteado por fragmentos, cores, lascas de madeira que lhe retiram a roupa e se fazem abrasivos na pele. Uma borboleta vermelha bate-lhe no rosto enchendo-o de pó. Uma animação de grande fisicalidade enche o espaço, afaga-lhe o corpo, a grande velocidade, imparável. São cores que o enchem de prazer. Um turbilhão. Não pára.

Continua. Sensações sucedem-se. Molhado. Viscoso. Chupado. Duro. Escuro. Aguçado. Inteligente. Émon é coberto por uma molécula húmida e cuspido para os braços da casa cubista, branca, possuidora de tentáculos rectilíneos e curvos que se abrem e fecham numa fresta de céu. O rapaz pegajoso atravessa a fenda e pousa no azul com estrondo, os membros num embate final, as nádegas esborrachadas, omoplatas sofridas, a cabeça afundada — salva amigavelmente. As mãos tocam a quietude. Uma perna ergue-se, flectida no joelho, possibilitando à planta do pé e dedos sentidos pacificadores. Descontracção assistida espalhada a todo o ser. Sorriso vencedor. Émon alonga-se, espoja-se, sente-se invadido por uma vegetação rasteira que o massaja e festeja, entrando-lhe nos sovacos, nas orelhas, na cabeça descendo para a testa. Nas pernas, no abdómen, no peito. As mãos sentem-no, percorrem-no. Um mamilo, uma coxa. A vegetação à sua volta e debaixo de si. Uma respiração funda. Uma brisa. Um raio de sol.


Django