O Verão é uma estação parva porque as moscas também são parvas e andam por todo o lado. Os seres humanos vão para a praia e as moscas ocupam o seu lugar. Estão por todo o lado e com ideias impecáveis, de mosca. Ideias glutinosas, que se agarram às paredes e sujam, como as de certo psiquiatra que, apanhando uma janela aberta, entrou para uma das páginas do jornal Público e ali ficou, impecável, claro.

Doutor, não pode explicar com maior clareza que o Homem é um animal e que portanto é um ente possuidor de agressividade e que isso é normal? E que é saudável deixar expandir a agressividade? Saudável para cada um e para todos — digamos, um país, o mundo. Mas o psiquiatra tem medo das demonstrações de vitalidade. Eis a sua visão: a civilização encarrega-se de entreter o Homem com uns espectáculos e etc., satisfaz-lhe as necessidades imediatas, tornando-o um ser pacificado. Circo e pão. Uma sociedade bonita, sem conflito. É este o rumo que não se pode perder.

E é isto que desejamos para nós próprios? Ou para os outros? É para isto que nos aplicamos, mesmo sem sabermos? Serão então bem-vindos os parvos, que se limitarão a viver de forma mais animal possível, mas expurgados da agressividade. Inconscientes, seguindo o dono (ou o líder). A civilização arrumada.

O pior pesadelo de alguém que morde a polpa da vida e preza a sua independência é imaginar que o inevitável terá de acontecer e que a sua vida é encaminhada por uma organização parda escondida por baixo de uma gabardina. Há a suspeita. Há, a tempos, quem o defenda. Admiro a frontalidade engravatada, o pesadelo viscoso que nos querem esfregar na pele, o vómito que me provoca. Vomito todo o conteúdo do meu aparelho digestivo até me restar unicamente a bílis, que cuspo, amarela, imitando as moscas, espalhando o ácido dissolvente que nos salva. Senhor doutor, arde-me tudo.

Mas a civilização é também um agente de violência. O excesso de civilização resulta em vontade de excessos. Gastronómicos, hooligânicos, ou a simples entrega aos prazeres da adrenalina, da agressividade primordial. É raro o ser humano que não tenha necessidade de sangue. Mesmo adormecido pelos encargos da sobrevivência — emprego, deslocações e outras coisas cansativas — ou adormecido pelo doce lar e pela TV. É uma entidade frustrada se não se entrega à violência. Aos rugidos, às ameaças, à pancadaria. Um ser vivo precisa de carnalidade activa. A organização e o controlo podem amolecer alguns. Todos os outros serão uma massa de frustrados, encurralados numa sociedade que os vigia. Podem tornar-se extremamente violentos. Porque se sentem presos, ou entediados. Mas não fazem guerras. As guerras são idealizadas pelos grandes civilizadores.



[Este texto tem por base o texto de opinião de Pedro Afonso, médico psiquiatra, publicado no jornal Público do dia dois de Agosto de 2008, inexplicavelmente.]