A criança deu consigo distraída a roçar com a mão um ferimento antigo no alto do joelho. Debruçou-se para ver de perto — sabiam fasciná-la, as crostas, irresistível atracção com uma pontinha provocadora muito delas.

— Vou arrancar-te, ó se vou, mesmo que não seja a melhor altura, mesmo que estejas colada ao meio. Quero lá saber que doa!

Prudente, tacteando os bordos da chaga, intrometeu a unha sorrateira e — oh! — sem custar nada, ali de repente sem a menor resistência, a crosta escura destacou-se por inteiro deixando à mostra um bonito círculo de pele rosada muito lisa.

— Bravo! Bravo! — não doía esfregar a cicatriz. Apanhou então a crosta, pousou-a na perna e, com um safanão, mandou-a bem longe mesmo à ponta do tapete. — E repara só como é grande, o tapete, muito maior que o campo de ténis, muito maior! — Negro, vermelho, amarelo, o tapete cobria a entrada desde a escada, onde a criança se agachava, à porta distante. Pôs-se a admirá-lo com ar sério, como se o visse pela primeira vez, e de repente um estranho fenómeno: parecia que as cores viviam, se animavam e lhe saltavam à cara num deslumbramento. Que esquisito!

— Já vi tudo, já compreendi: os vermelhos são brasas, carvões ardentes. Se lhes toco fico queimado. Queimado, sim senhor, ou morto, feito carvão. E os negros?, pois vamos lá... os negros cobras, isso mesmo, cobras horríveis e venenosas, víboras aos montes, serpentes grossas como troncos de árvore. Basta tocar uma e pronto, sou logo mordido, morto, nem chego ao jantar. Mas se conseguir atravessar de ponta a ponta este tapete perigoso — sem me queimar nem ser mordido — então amanhã, dia dos meus anos, vão-me dar um cãozinho de prenda.

Para avaliar melhor a selva de lagoas de cor e morte levantou-se, subiu vários degraus. Apoiado o rosto grave no corrimão — olhos azuis logo abaixo da franja platinada, queixo bicudo — perscrutou demoradamente o tapete. Conseguiria haver-se com a aventura? Podendo apenas caminhar no amarelo era preciso que ele existisse em maior quantidade. Pesou na melhor consciência os riscos: nalguns pontos o amarelo fazia-se muito estreito; pedaços havia, perigosos, em que nem existia, embora parecesse à primeira vista, que se prolongava, contínuo, até ao outro lado. Vendo bem, qual a dificuldade da empresa? No dia anterior não percorrera triunfante a longa álea de tijoleira sem pisar uma só junta? Depois dessa façanha o tapete não punha dificuldades intransponíveis. Pena era que houvesse tantas serpentes... Só pensar nelas o electrizava em correntes de medo, arrepios velozes pernas acima, picadas de alfinete que pareciam cócegas nas plantas dos pés.

Desceu vagaroso os degraus e plantou-se à borda do tapete. Avançou um pé, calçado de sandália, e pousou-o num motivo amarelo com delicadeza, fazendo depois o outro juntar-se ao primeiro. (Naquele amarelo só havia espaço para os pés juntos.) Até ali correra tudo bem. Ia a caminho. Mas ainda assim o rosto cheio, oval perfeito, crispava-se mais pálido do que era hábito. Braços abertos para manter o equilíbrio, resolveu erguer bem alto a perna sobre um buraco negro e ameaçador visando com o calcanhar um friso amarelo, delicado, que via do outro lado. Um segundo passo e parou nervoso, para respirar. Media pelo menos cinco metros o friso estreito que tinha à frente. Avançando na maior cautela ganhava tempo como um funâmbulo às contas com a corda-bamba. A lista acabava de lado em arabescos, e foi obrigado a um salto por sobre um emaranhado sinistro de vermelho e negro. Tropeçou porém a meio do caminho batendo os braços feito louco, autêntico moinho de vento, e reencontrou o equilíbrio na margem oposta parando, cansado, num repouso bem merecido. Os músculos tinham-se contraído no esforço do andar em pontas, braços abertos, punhos fechados. São e salvo na ilha amarela recuperava a calma, certo de não cair no abismo. — Como era bom estar ali!, poder ficar sempre no amarelo seguro, livre de todos os perigos! Mas aquilo de chegar ao fim preocupava-o, queria sentir-se merecedor do tal cãozinho.

Toca a recomeçar a viagem. Avançava agora numa lentidão extrema, á cada passo parava para avaliar o ponto exacto em que devia pôr o pé. A dada altura teve porém de escolher entre dois caminhos, à direita e à esquerda. Acabou em decidir-se pela esquerda (mais difícil, todavia) só porque atravessava nela menos negro, e o negro é que assustava. Com um olhar rápido avaliou o caminho percorrido e verificou que retroceder era impossível, estava feito o mais difícil, vencida mais de metade. Também seria inútil tentar uma fuga com saltos de lado porque o tapete era largo. Custasse o que custasse tinha de chegar ao fim, embora tomado de pânico por todo o vermelho e negro a enfrentar — pânico idêntico ao da Páscoa anterior quando se perdera sozinho no canto mais escuro do bosque.

— Vamos lá, mais um passo. — Pousou o pé no único pedaço amarelo ao alcance. Só um centímetro o separava agora do abismo negro e não, não iria tocar-lhe, tinha disso a certeza, bem via a fina lista amarela na ponta da sandália. Mas a serpente ondulou como se tivesse sentido aproximar-se o inimigo, ergueu a cabeça cruel de olhar brilhante, disposta a morder ao menor toque.

— Não hei-de tocar-te! Não podes morder-me! Vê lá bem que não te toco!

Silenciosa, deslizou perto outra serpente levantando também a cabeça prenhe de ameaças: eram duas cabeças, quatro olhos que esperavam o pedaço de carne descoberta sem defesa, à frente da tira da sandália. A criança ergueu-se o mais possível no bico dos pés. Aterrorizada, deixou passar muito tempo antes de voltar a mexer-se, ou respirar. O momento seguinte era difícil, uma verdadeira passada de gigante. Naquele ponto mais largo tinha de vencer o rio ondulante e negro que rasgava o tapete de lés a lés. Respirando fundo levantou numa lentidão a perna, estendeu-a quanto podia muito muito à frente, baixou-se aos poucos acabando por apoiar a ponta do pé na margem de outra ilha amarela. Quis lançar para diante o peso do corpo, levantar o outro pé, mas não conseguiu. Tinha as pernas demasiado abertas, era impossível desfazer a posição. Baixou os olhos. O rio enrolava-se em baixo, profundo e móvel, com um brilho baço e viscoso. A criança viu então que vacilava e agitou os braços num frenesi para recuperar o equilíbrio: mas começava a perder o pé, a inclinar-se inexoravelmente para a direita, primeiro devagar, depois mais e mais depressa. No último instante ainda deitou a mão ao vazio, por instinto, como se quisesse amortecer a queda. Mas de nada valeu, mergulhou no magma negro, borbulhante, deixando escapar um grito de pânico.

Lá fora, ao sol e não muito longe de casa, a mãe andava à procura do filho.


(in Someone like you, 1953)


Roald Dahl nasceu de pais noruegueses em 1916 (Llandaff, País de Gales), dos 19 aos 22 anos andou nas vias aéreas da RAF, depois delas rumou a Washington onde veio a descobrir que também era, afinal, escritor. Alguém como nós — avisa, quando decide o título a esse livro que mais serve, entre os seus, o excepcional talento do insólito. De facto, bem descuidosos na segurança deste conforto burguês, página a página caem os personagens em traições ocultas pelo secreto das suas amenidades. Um tapete elegantemente decorado? É ler que perigo insuspeitado contém...