"Fiquei a vê-lo afastar-se, repetindo para mim mesmo as últimas palavras que ele dissera. Não havia crime em Estrella de Mar, nem tráfico de droga, assaltos ou roubo de automóveis? A verdade era que a povoação inteira estava ligada ao crime como a uma rede de TV por cabo. O crime insinuava-se em praticamente todos os apartamentos e vivendas, em todos os bares e clubes nocturnos, como qualquer pessoa facilmente deduziria do defensivo sistema nervoso de alarmes e câmaras de vigilância. No terraço junto à piscina, por baixo do apartamento do Frank, metade das conversas era a respeito do último episódio de arrombamento ou roubo.

À noite, ouvia o uivo das sereias dos carros da força de voluntários enquanto perseguiam os ladrões de automóveis pelas estreitas e tortuosas ruas. Todas as manhãs, pelo menos uma proprietária encontrava os cacos do vidro da montra da sua boutique caídos no meio dos vestidos que restavam. Os passadores de droga vigiavam como abutres as portas dos bares e discotecas, os saltos altos das prostitutas matraqueavam as ruas empedradas por cima do porto e as câmaras dos autores de filmes pornográficos provavelmente rodavam em duas dúzias de apartamentos. Havia crime em abundância, e no entanto o inspector Cabrera nada sabia, porque os residentes de Estrella de Mar nada comunicavam à Policia espanhola. Por razões que só eles conheciam, mantinham o silêncio, transformando em fortalezas as suas casas e lojas, como se jogassem um complicado e perigoso jogo.

O espectáculo do Renault a arder na noite excitara-me. Acordado pelas chamas que pareciam lamber o tecto do quarto, correra para a varanda e vira o habitáculo do carro acender-se como uma lanterna, o fumo a revolutear nos feixes de luz dos faróis dos outros carros que recuavam em busca de segurança. Estava ali a decorrer um dos ritos pagãos do mundo moderno, o incendiar de um automóvel, testemunhado pelas jovens da discoteca cujos vestidos cobertos de lantejoulas tremeluziam no clarão das chamas."


J. G. Ballard, Noites de Cocaína, (1996) 2000,
Quetzal Editores, tradução de Mário Correia